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O Rio Invisível: Evolução dos indicadores de pobreza extrema e pessoas em situação de rua (Parte 1/2)

*Por Ana Luiza Pessanha e Larissa Montel

Em períodos de crise econômica, um dos primeiros efeitos a ser percebido pela população é o aumento do número de conhecidos desempregados e do número de pessoas em situação de rua nos lugares onde frequenta. Se você é carioca e circula pelas ruas da cidade, então certamente tem notado que nos últimos anos a criatividade das pessoas que estão em busca de fontes de renda se tornou cenário comum no cotidiano. Tem cantores de rap, vendedores dos mais inusitados utensílios, dançarinos fantasiados de personagens da Marvel e declamadores de poesia. Todos em uma tentativa honesta de conseguir alguns trocados. Curiosamente, as pessoas mais vistas pela população são as mais invisíveis para o Estado.

Não obstante observações pessoais possam ser precursoras de boas ideias, quando pensamos em política pública a primeira etapa do processo deve constituir de um diagnóstico correto do problema a ser enfrentado. Nesse sentido, o objetivo desse texto é apresentar ao leitor carioca a evolução dos dados a respeito de pessoas em situação de pobreza extrema e em situação de rua, respectivamente. Posteriormente, faremos uma breve revisão preliminar da literatura a respeito de possíveis intervenções a serem consideradas pelos formuladores de políticas públicas, respeitando diagnósticos locais do município do Rio, restrições fiscais e objetivos sociais.

Em relação aos dados, iremos comparar a evolução do número de domicílios em situação de pobreza a partir de duas bases de dados: Microdados do Cadastro Único, realizado pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) e a PNAD Contínua anual, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma das principais diferenças entre as duas bases corresponde ao tempo em que o órgão executor acompanha a mesma família. No primeiro caso, a família que possui renda familiar por pessoa até metade de um salário mínimo é acompanhada por tempo indeterminado, desde que mantenha seu cadastro ativo. Este cadastro constitui pré-requisito para se tornar beneficiário de alguns programas sociais como Bolsa Família, PRONATEC, Carteira do Idoso e outros. No caso da PNAD Contínua, o IBGE acompanha o mesmo domicílio por apenas cinco trimestres e não possui nenhuma vinculação com programas de governo, tendo como único objetivo a divulgação de estatísticas robustas a respeito de variáveis como demografia, mercado de trabalho e educação.

O mapa 1 abaixo mostra a distribuição por área administrativa de domicílios beneficiários do Programa Bolsa Família. Os microdados do Cadastro Único não fornecem informação sobre o bairro que a família mora. Assim, utilizamos o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) no qual a família realizou o cadastro como proxy para a área administrativa na qual ela reside. A distribuição de cores do mapa é baseada na escala da proporção anual de domicílios que receberam o benefício em 2018. Algumas famílias, no entanto, não tinham informações do CRAS em que foi realizado o cadastro, o que explica a atribuição de NA’s para algumas áreas administrativas.

Para ver a evolução histórica desse indicador entre os anos de 2013 e 2018, clique no ícone vermelho da área desejada. A análise do mapa nos mostra que as áreas administrativas de Campo Grande. Rocinha, Méier, Vila Isabel, Copacabana, Botafogo, Rio Comprido, São Cristóvão, Centro, Portuária, Ramos, Penha, Vigário Geral e Ilha do Governador tiveram queda da proporção de famílias beneficiárias ao longo do período analisado. As exceções a esse padrão são as áreas de Santa Cruz, Bangu, Complexo do Alemão, Anchieta, Pavuna e Barra da Tijuca, que apresentam aumento da participação, e as áreas de Guaratiba, Jacarepaguá, Realengo, Tijuca e Irajá, que apresentaram aumento entre 2013 e 2017 e pequena queda de participação em 2018.

MAPA 1 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018)

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Outro indicador importante é a evolução da renda familiar por pessoa (RFPC) por área administrativa e por faixa de renda. Para isso, as famílias foram divididas em quatro tipos de renda: (i) Famílias com RFPC inferior a R$89, valor equivalente à linha de extrema pobreza do Governo Federal; (ii) Famílias com RFPC entre R$89 e R$178 (linha de pobreza do Governo Federal); (iii) Famílias com RFPC entre R$178 e R$522 (meio salário mínimo); (iv) Famílias com RFPC superior a R$522. Os mapas 2, 3, 4 e 5 mostram a distribuição geográfica para o ano de 2018 de cada uma dessas faixas de renda, respectivamente. As instruções para análise desses mapas são análogas às do mapa anterior.

Comparando a distribuição das famílias do mapa 2, observamos que as áreas de Santa Cruz, Guaratiba, Barra da Tijuca, Bangu, Tijuca, Méier, Complexo do Alemão, Realengo, Anchieta, Pavuna e Irajá apresentaram aumento da participação de famílias com renda mensal por pessoa inferior a 89 reais. Quando olhamos para o segundo nível de renda passível de benefício do Bolsa Família (mapa 3), observamos que o padrão do mapa anterior se repete, com a inclusão da área administrativa de Campo Grande.

MAPA 2 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC inferior a R$89, valor equivalente à linha de extrema pobreza do Governo Federal;

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MAPA 3 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC entre R$89 e R$178 (linha de pobreza do Governo Federal);

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MAPA 4 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC entre R$178 e R$522 (meio salário mínimo)

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MAPA 5 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC superior a R$522

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A análise comparativa dos três mapas anteriores nos sugerem que há uma boa focalização do Programa Bolsa Família, com exceção das áreas administrativas do Méier e de Campo Grande, que apresentaram um aumento da participação de domicílios com RFPC dentro do limite do programa que não foi acompanhado de um aumento da proporção de famílias beneficiárias. Nesse sentido, faz-se necessária uma investigação mais detalhada dessa lacuna, de forma a identificar se há um processo de vazamento (famílias com RFPC maior que R$178 recebendo o benefício) ou uma falta de cumprimento das condicionalidades atreladas ao programa.

Com os dados da PNAD Contínua, observamos a evolução da probabilidade de um domicílio estar em condição de extrema pobreza (Renda domiciliar por pessoa de até R$151) ou pobreza (Renda domiciliar por pessoa entre R$151 e R$S 438) na última entrevista, dado que estava na mesma condição na primeira entrevista. Ou seja, estamos comparando a evolução de um indicador inter-anual de mobilidade social para os anos 2015-2016, 2016-2017 e 2017-2018. O período curto de análise decorre de limitações das bases de dados disponíveis, uma vez que o IBGE só incluiu a quinta entrevista a partir de 2016 e as informações de renda familiar total (incluindo benefícios do governo, aposentadoria, salário e outras fontes de renda) só estão disponíveis na base de dados anual. As linhas de pobreza, por sua vez, correspondem àquelas estabelecidas pelo Banco Mundial, de US$1,9 e US$5,5 diários por pessoa, respectivamente.

O gráfico 1 abaixo mostra a evolução desse indicador de mobilidade. A probabilidade de um domicílio extremamente pobre em 2015 permanecer nessa condição em 2016 era de aproximadamente 13%. No caso da pobreza, essa probabilidade era de 38%. Já no ano de 2017, as probabilidades de um domicílio permanecer na mesma situação no ano seguinte eram de 22%, no caso de extrema pobreza e de aproximadamente 41%, no caso de pobreza. Colocando uma lupa nas características dos domicílios que ascenderam socialmente, a porcentagem de domicílios que eram chefiados por mulheres e que saíram da condição de extrema pobreza caiu de 41% para 29,5%. No caso dos domicílios que deixaram de ser pobres, essa porcentagem aumentou de 21% para 28,5%

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No que se refere ao mercado de trabalho, do total de domicílios que saíram do status de extrema pobreza em 2015-16, apenas 37% tinham chefe de domicílio que estava desempregado na 1ª entrevista e se tornou ocupado na 5ª visita. Já entre 2017 e 2018, esse valor subiu para 54,5%, sugerindo que houve alguma melhora no mercado de trabalho para essas famílias extremamente pobres. No caso dos domicílios pobres, houve uma queda de 1,5 pontos percentuais nesse indicador, saindo de 21% para 19,5%. Tais resultados indicam que, para os domicílios pobres, o fator renda do trabalho não foi o principal componente da mobilidade observada.

Analisando o fator escolaridade do chefe, do total de domicílios que saíram da extrema pobreza em 2016 vis à vis o ano anterior, 27% apresentaram aumento dos anos de escolaridade do chefe de domicílio. Entre 2017-2018, esse valor caiu para 22,7%. Para as famílias pobres, tal valor apresentou queda de 3 pontos percentuais, saindo de 32% para 29%. Apesar de não termos dados em painel suficientemente longos para uma análise mais robusta da pobreza com as bases de dados disponíveis, esses resultados nos alertam para a questão da pobreza estrutural no Brasil, até agora pouquíssimo estudada.

A análise da pobreza requer uma compreensão de sua multidimensionalidade e a distinção entre sua concepção estática e dinâmica. Em particular, é necessário distinguir os indivíduos que experimentam a pobreza transitória daqueles que sofrem de pobreza estrutural. No primeiro caso, os indivíduos transitam temporariamente por esse estado de pobreza (ou extrema pobreza), devido a fatores estocásticos (aleatórios) ou mudanças na acumulação de ativos e seus respectivos retornos. No que diz respeito à pobreza estrutural, o indivíduo abaixo de uma certa linha de pobreza permanece nesse estado repetidamente ao longo de seu ciclo de vida, devido a condições estruturais e não estocásticas (Carter e Barret, 2006). Entre as características que podem estar associadas à pobreza estrutural estão a escassez de ativos físicos e capital humano, composição demográfica, localização da família e baixa renda no trabalho (Mckay e Lawson, 2002). Nesse sentido, o estudo da pobreza estrutural diz respeito à compreensão da pobreza como um processo dinâmico no qual os pobres têm pouca ou nenhuma mobilidade social. Sem uma análise mais longa e robusta do processo de pobreza, distinguindo-o entre transitória e permanente, não teremos como atacar o problema na sua raiz, isto é, identificando as lacunas no processo de acumulação de ativos produtivos (que geram renda). Os dados apresentados acima nos sugerem que pode haver uma preponderância de mobilidade social temporária ao invés de uma mobilidade conduzida por fatores como aumento da escolaridade dos membros do domicílio e empregos de maior qualidade, que geram uma renda maior e mais estável.

Para além da necessidade de um acompanhamento mais longínquo e aprofundado das famílias pobres, é fundamental que os formuladores de política pública incorporem o conceito de investimento social em seus desenhos de política de combate à pobreza estrutural. Criado a partir do trabalho da presidência holandesa da União Europeia em 1997, tal conceito diz respeito à compreensão da política social como um fator produtivo, isto é, que pode gerar aumento de eficiência na economia mantendo inclusão social. Com o objetivo de atuar frente aos chamados “novos riscos sociais”, atrelados à mudança demográfica, robotização do trabalho e outros fenômenos contemporâneos, o investimento social leva em consideração todo o ciclo de vida dos indivíduos. Nesse sentido, as políticas de investimento social são pautadas na tríade ‘buffers’ (ou ‘colchões’, em tradução livre), ‘Fluxo’ e ‘Estoque’.

O primeiro pilar objetiva assegurar a proteção social, como o Bolsa Família, por exemplo. O pilar do ‘Fluxo’ atua sobre o mercado de trabalho, tentando garantir elevados níveis de participação (principalmente de mães) em empregos de alta qualidade e transições mais suaves entre empregos e/ou entre o desemprego e a ocupação. Por fim, o pilar do ‘Estoque’ está atrelado à capacidade produtiva no futuro, através do aumento do estoque de capital humano e da produtividade (Hemerijck, 2013). Juntando essas três vertentes, as políticas de investimento social buscariam um crescimento autossustentável e inclusivo. Apesar das nítidas dificuldades de desenho e operacionalização dessas políticas, tais vertentes parecem ser um bom começo para enfrentar a crise econômica e o aumento da pobreza que dela resulta.



Ana Luiza Pessanha é membro da Iniciativa RioMais. Economista pela UFRJ com foco em Pobreza e Desigualdade, é criadora e coordenadora do Núcleo Executivo de Políticas Públicas do Movimento Acredito na cidade do Rio de Janeiro.


Larissa Montel é graduada em Relações Internacionais pela UNESP. Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ. Gestora Estratégica do Projeto RUAS. É também parte da coordenação do Fórum Permanente sobre população adulta em situação de rua do Rio de Janeiro.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Diego Passadori/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] Em dólares PPP de 2011. Valores convertidos em reais pela base de dados da OCDE para consumo privado e deflacionados pelo INPC do Rio de Janeiro para valores de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/sdd/prices-ppp/

Referências Bibliográficas
Carter, M. R. and Barrett, C. B. (2006). The economics of poverty traps and persistentpoverty: An asset-based approach.Journal of Development Studies, 42(2):178–199

Hemerijck, A. Changing Welfare States. Oxford University Press, 2013.

Mckay, A. and Lawson, D. (2002). Chronic Poverty : A Review of Current QuantitativeEvidence CPRC Working Paper No 15 Chronic Poverty Research Centre ISBN Number: 1-904049-14-1.Development, (April):1–28

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Um diagnóstico das desigualdades entre escolas públicas no Rio de Janeiro

*Por Arthur Rodrigues

A educação é um dos principais instrumentos de combate ao ciclo intergeracional da pobreza. Um filho de pais na base da pirâmide social tem maior probabilidade de se tornar um adulto pobre, por dificuldade de acesso a bens como saúde, educação e, consequentemente, oportunidades no mercado de trabalho. No Brasil, um dos países com menor índice de mobilidade social do mundo, a situação é especialmente grave. Em média, descendentes de famílias entre os 10% mais pobres da população levariam 9 gerações para alcançar a renda média, contra apenas 2 gerações na Dinamarca e 4.5 na média entre os países da OCDE¹.

Nesse quadro, a educação pública é uma ferramenta poderosa para mitigar os efeitos da desigualdade de oportunidades e estimular o “elevador social”. No Rio de Janeiro, cidade em que desigualdade e segregação estão encravadas na própria ocupação territorial, é importante analisar se essa ferramenta está sendo utilizada de maneira eficiente e se de fato contribui para estimular a ascensão social.

Para tal, devemos analisar as 1540 escolas da rede municipal, 364 da rede estadual e 27 da rede federal na cidade do Rio de Janeiro observadas no mapa abaixo. Passe o mouse para saber o nome do colégio e clique para saber o nome do bairro.

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DESIGUALDADE DE RESULTADOS

SAEB

O SAEB é um teste administrado aos alunos da rede pública de forma bienal, avaliando alunos do 5º e 9º ano do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio nas disciplinas de português e matemática. Se observarmos a média da nota dos alunos nas provas, em conjunto com o índice de nível socioeconômico das escolas elaborado pelo INEP para 2015, podemos analisar a correlação entre essas duas variáveis para as diferentes redes de ensino, tendo em mente que a princípio a rede estadual não oferta ensino fundamental e a rede municipal não oferta ensino médio

O índice socioeconômico é elaborado a partir de questionário entre os alunos da escola e leva em consideração a renda familiar, a posse de bens e a contratação de serviços de empregados domésticos pela família dos estudantes, além do nível de escolaridade de seus pais ou responsáveis. Passe o mouse (ou clique, caso esteja visualizando por mobile) no gráfico para ver qual escola representa cada ponto e o valor do índice socioeconômico e da média da prova. Os pontos verdes representam escolas da rede municipal, os azuis da rede estadual e os vermelhos da rede federal.

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Os resultados da prova SAEB 2017 nos permitem observar desigualdades socioeconômicas no ensino público. O colégio com a melhor média na rede municipal, a Escola Roberto Burle Marx, é também a com o segundo maior nível socioeconômico dos alunos da rede. A federal com melhor média, o Colégio Pedro II do Humaitá, apresenta o quarto maior nível socioeconômico. Em média, um aumento de 10 pontos no nível socioeconômico da escola indica um aumento esperado de 29,7 pontos na média do SAEB. Também existe desigualdade entre as redes de ensino: mesmo que a escola com a melhor nota seja a escola municipal Roberto Burle Marx, escolas da rede federal obtiveram notas em média 36 pontos ou 16% maior do que as da rede municipal.

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Os resultados do 9º ano corroboram as afirmações anteriores. A escola Roberto Burle Marx apresenta a melhor nota e o maior nível socioeconômico da rede municipal, enquanto o Colégio Militar apresenta a melhor nota e o segundo maior nível socioeconômico da rede federal. As escolas da rede federal apresentam notas 53 pontos ou 20% maiores que a rede municipal, e um aumento de 10 pontos no nível socioeconômico da escola vem acompanhado de um aumento de, em média, 36 pontos na nota do SAEB. Mesmo com o ensino fundamental não sendo atribuição do estado, uma escola estadual realizou a prova do SAEB para o 9º ano, e obteve nota abaixo da média das redes municipal e federal.

ENEM

Para a avaliação do Ensino Médio, a nota do ENEM foi utilizada para comparação, visto que abrange um universo maior de escolas que a prova SAEB. As notas avaliadas são de 2015, último ano em que o INEP divulgou o resultado agregado por escola. Os pontos azuis representam escolas da rede estadual e os vermelhos da rede federal.

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A desigualdade entre redes observada para o ensino fundamental persiste para o ensino médio: as escolas da rede federal obtiveram uma média 127 pontos ou 25% maior do que as da rede estadual. A distinção entre escolas estaduais e federais é muito clara, tanto em termos de índice socioeconômico médio, quanto em termos de nota média do ENEM, com o Colégio de Aplicação da UERJ se comportando de maneira anômala em relação ao restante da rede estadual. Além disso, a diferença entre redes pode até mesmo ser subestimada, visto que a base de dados do ENEM não inclui as escolas em que menos de 50% dos alunos do terceiro ano fizeram a prova. Se os alunos decidem entre fazer ou não a prova de acordo com a expectativa de suas notas, a adição de escolas estaduais de baixa adesão ao ENEM aumentaria ainda mais a distorção entre redes. A desigualdade também se manifesta em termos socioeconômicos: um aumento de 10 pontos no índice socioeconômico está relacionado a um aumento de 111 pontos em média na nota do ENEM.

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Além disso, é importante ressaltar a concentração geográfica das 15 escolas com maior nota no ENEM. Dentre estas, apenas o Colégio Pedro II Unidade Realengo se situa na Zona Oeste da cidade, lar de mais de 2.3 milhões dos cerca de 6 milhões de cariocas.

DESIGUALDADE DE infraestrutura

Entretanto, a correlação entre nível socioeconômico das escolas e notas nas provas de avaliação não garante que os alunos ricos estejam frequentando escolas melhores. É possível que alunos ricos e pobres dentro da mesma escola alcancem resultados diferentes por fatores extraescolares: por exemplo, a família rica tem condições de pagar aulas de reforço escolar. Assim, é possível que todo o efeito de desigualdade se dê pela renda e não por diferenças na qualidade das escolas frequentadas, e uma alocação aleatória entre ricos e pobres dentro das escolas produza os resultados observados. Uma maneira de avaliar com mais profundidade essa hipótese é observando a desigualdade entre escolas não pelo resultado em provas, mas pela infraestrutura que ela oferece a seus alunos.

Para isso, é preciso estudar a pesquisa de infraestrutura das escolas realizada anualmente no âmbito do Censo Escolar. A partir da base de dados do Censo Escolar 2019, construiu-se um índice de infraestrutura para cada escola a partir da existência ou não dos seguintes equipamentos: elevador para alunos com mobilidade reduzida, laboratório de ciências, máquina copiadora, laboratório de informática, internet e rede por banda larga. Os seis equipamentos representam o mesmo peso na composição do índice. Assim, podemos comparar a infraestrutura que as escolas de diferentes redes fornecem para seus alunos, a das escolas frequentadas por alunos de diferentes níveis socioeconômicos e como as escolas com melhor infraestrutura se concentram geograficamente. A desigualdade entre redes pode ser observada no boxplot abaixo:

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Escolas de diferentes redes também apresentam, em média, diferenças significativas em sua infraestrutura. O índice médio de infraestrutura da rede federal foi de 0.94, valor 30% maior que o índice médio de 0.72 da rede estadual e 45% maior que o índice médio de 0.65 da rede municipal.

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Também é possível observar desigualdade de infraestrutura de caráter socioeconômico. As escolas pertencentes ao grupo socioeconômico² mais elevado apresentam índice de infraestrutura médio de 0.92, valor 179% maior que o índice médio de 0.33 das escolas que compõe o grupo de menor nível socioeconômico. Além disso, um salto entre os grupos de nível socioeconômico vem acompanhado de um aumento da média do índice de infraestrutura para todos os grupos observados.

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Por último, também é possível observar a distribuição geográfica da infraestrutura das escolas da rede pública do Rio de Janeiro a partir da média do índice de infraestrutura das escolas de cada região administrativa da cidade. Optou-se pela análise das regiões administrativas, visto que existem bairros da cidade sem nenhuma escola da rede pública. A região com melhor resultado é o Centro, com índice médio de 0.64. Nenhum subdistrito da Zona Oeste está presente entre os cinco melhores no índice.

CONCLUSÃO

Quando o carioca compara escolas públicas para matricular seus filhos, encontra um cenário de desigualdade socioeconômica, geográfica e entre as redes de ensino. Os recursos de infraestrutura parecem ser desproporcionalmente alocados para alunos de maior nível socioeconômico, com possíveis efeitos perversos sobre a mobilidade social na cidade. As escolas da rede pública com mais infraestrutura e com melhores notas em exames de avaliação são frequentadas por alunos com maior nível socioeconômico médio, têm maior probabilidade de pertencer à rede federal e estão concentradas fora da Zona Oeste.

É importante ressaltar que nenhum dos resultados obtidos nesse artigo indicam relação causal entre as variáveis observadas, e não levam necessariamente a prescrições de políticas públicas para mitigar o problema. Para isso, precisamos estudar mais a fundo como funciona a alocação de alunos em cada escola e tentar estimar como seria o desempenho de determinado aluno caso ele estudasse em uma escola com diferentes características. É o que será feito para a rede municipal em um texto futuro, que analisará como o município pode utilizar a sua rede de escolas para realizar políticas públicas que impulsionem a ascensão social.



Arthur Rodrigues é um dos idealizadores da Iniciativa RioMais. Formando em Economia pela UFRJ e certificado em Análise de Dados para Políticas Públicas pela Universidade de Chicago. Possui experiência profissional em consultoria estratégica de gestão pública e políticas públicas.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Educação e Ciência na Cidade do Rio de Janeiro/Wikipedia

*** Todos os mapas e gráficos foram elaborados pelo autor a partir das seguintes fontes: INEP (Censo Escolar 2019, ENEM por escola 2015, SAEB 2017, INSE 2015) e SIURB-RJ (geolocalização das Escolas Municipais, Escolas Estaduais e Escolas Federais)

Notas de Rodapé
[1] “A Broken Social Elevator? How to Promote Social Mobility” – OCDE 2018
[2] O INEP separa as escolas em 6 grupos socioeconômicos de acordo com o nível do INSE. No Rio de Janeiro, nenhuma das escolas da rede pública faz parte do grupo 1. Ver metodologia completa.

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Programa Segurança Presente (Parte 1/2)

*Por Bernardo Duque e Manuel Faria

Até o final de 2018, a Operação Segurança Presente era realizada em apenas cinco bairros da cidade do Rio de Janeiro – Lapa, Lagoa, Aterro do Flamengo, Méier e Centro. Entretanto, com a eleição do atual governador, Wilson Witzel, em apenas um ano, o programa se expandiu para quase 20 bairros, abrangendo outros municípios do estado, como Nova Iguaçu e Duque de Caxias.

O Segurança Presente introduz, em pontos específicos da cidade, um patrulhamento por policiais e agentes civis – com coletes característicos – buscando prevenir a atuação de criminosos. Mesmo se tratando de uma política estadual, o programa contou, em diversos momentos, com recursos da prefeitura e de comerciantes do Rio de Janeiro, e dada sua focalização – em bairros notórios da cidade –, apresenta crescente relevância para o município em termos de segurança pública.

Como toda política pública, a alocação de verbas dos contribuintes para o programa significa, necessariamente, deixar de investir esses recursos – ainda mais escassos no cenário de restrições fiscais atuais – em outras políticas de segurança ou de outras áreas (para os familiarizados com o termo, implica num custo de oportunidade). Logo, é importante esclarecer o problema que o programa busca resolver, como ele funciona e a que custos, se ele é a melhor alternativa para resolver o problema identificado, e quais são seus resultados reais.

Este artigo inicia uma série de publicações a respeito do Segurança Presente. Aqui o programa será apresentado, destacadas suas origens e seu funcionamento, e discutido à luz da literatura criminal. Mais especificamente, enfatizando as duas primeiras ondas de implementação: 1) Lapa e 2) Lagoa, Aterro do Flamengo e Méier.

O surgimento do Segurança Presente

O programa surgiu frente à ocorrência de três assassinatos em uma semana no bairro da Lapa – um estudante vítima de latrocínio no dia 1º de dezembro de 2013, um morador de rua assassinado no dia seguinte e um dono de bar da região, também vítima de latrocínio, dias depois. Isso desencadeou pressões vindas dos moradores e dos comerciantes locais para que alguma solução fosse dada ao problema da violência.

Nesse contexto, o Lapa Presente foi anunciado em 17 de dezembro de 2013, duas semanas após a primeira morte, e implementado em 1º de janeiro de 2014, apenas um mês após as ocorrências. Isso sugere fortemente que o desenho do programa se deu de forma responsiva, imediata e não planejada, e que, portanto, sua formulação teve muito mais uma motivação política do que técnica. Ademais, dado o curtíssimo tempo em que a política foi elaborada, pode-se argumentar que dificilmente houve a realização de um diagnóstico (com suficiente rigor) e a consideração de alternativas para se resolver o problema identificado da melhor maneira possível.

A segunda onda de implementação, por sua vez, perpetuando o caráter reativo do programa, foi desencadeada por uma série de crimes em um bairro da zona sul da cidade. Em abril de 2015, um adolescente levou uma facada na Lagoa Rodrigo de Freitas, e no mesmo dia outro homem foi roubado e esfaqueado no local. Porém, o caso de maior destaque à época foi o de um ciclista vítima de latrocínio na mesma região. Os crimes, novamente, desencadearam protestos e pressões vindas da sociedade, o que, em poucos meses, levou à implementação, do Méier Presente, do Lagoa Presente e do Aterro Presente no dia 1º de dezembro de 2015. Estes dois últimos bairros sediariam também eventos nas Olimpíadas em 2016, o que certamente foi considerado para receberem o programa.

O funcionamento da operação

A operação se baseia no patrulhamento ostensivo – isto é, exposto e declarado – e restrito a determinadas ruas do bairro escolhido (proporção pequena em relação ao tamanho total do bairro), assim como na comunicação ativa – estabelecida por meio de disque denúncia específico em cada operação – com moradores e comerciantes locais, a fim de reduzir as oportunidades de se cometer crimes. Ou seja, trata-se de um policiamento preventivo e direcionado cujo objetivo é inibir os criminosos via maior presença policial. Essa ideia é coerente com a explicação racional do crime descrita por Becker (1968), na qual o aumento nas expectativas de apreensão e punição desincentivariam criminosos a cometer delitos, mas oposta às práticas de policiamento reativo – que atua sobre crimes que estão ocorrendo ou que já ocorreram, ao invés de tentar preveni-los – hoje estabelecidas pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).

Em seu projeto piloto – o Lapa Presente –, totalmente financiado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, foram alocados policiais militares (PMs) previamente designados, guardas municipais e agentes da Secretaria de Estado do Governo (SEGOV), responsável pelo programa¹. Eram formadas duplas ou trios, sempre com a presença de ao menos um PM e um agente civil, realizando rondas a pé, de bicicleta ou por viaturas (este caso mais raro devido aos custos associados). O agente era responsável somente por filmar as abordagens – sem possuir poder de polícia –, garantindo a chamada “abordagem cidadã”, cujo objetivo era evitar abusos policiais e, ao mesmo tempo, resguardar os agentes de possíveis falsas acusações durante as rondas.

A segunda onda de implementação, por sua vez, foi totalmente financiada pela Fecomércio/RJ, mantendo a lógica do patrulhamento por rondas de duplas ou trios (presente em todos os bairros do programa), porém o efetivo de policiais militares deixou de ser totalmente alocado previamente. Apenas algumas vagas eram fixas a fim de manter a cultura da operação, enquanto as demais eram destinadas – além das disponíveis aos agentes civis – aos policiais militares que quisessem trabalhar durante seus horários de folga. Neste âmbito, o Decreto 45.475 de 27/11/2015 instituiu o Programa de Estímulo Operacional (PEOp), que regulamentava a remuneração de horas extras para policiais militares em operações da Secretaria de Estado. Assim, o programa passou a competir com o já existente Regime Adicional de Serviços (RAS), que remunera a hora extra dos policiais que atuam como reforço no efetivo dos batalhões.

Outro aspecto importante do programa, porém de pouco conhecimento do público, é seu caráter social. Na base das operações de cada bairro há assistentes sociais, responsáveis por atender moradores de rua e usuários de drogas em situações de vulnerabilidade social, acolhendo-os e auxiliando-os.

O que diz a literatura?

No fim da década de 80, surgiu uma nova literatura dentro da área de Segurança Pública, chamada Criminology of Place ou Criminologia do Lugar (em tradução livre). Weisburd (2015) argumenta que com o advento desta nova área, o foco da unidade de análise da criminologia passou das pessoas para as micro localidades. Isto é, antes, tentava-se responder o porquê de as pessoas cometerem crimes, e depois a busca mudou para o porquê de os crimes ocorrerem em determinados locais. Micro localidades são conjuntos de ruas ou segmentos de ruas, ou seja, uma agregação territorial menor que o nível do bairro. No artigo, o autor visa definir uma “Lei da Concentração do Crime”: apenas uma parte pequena do território concentra a maior parte da ocorrência de crimes (chamados de hot spots)².

Em sua revisão de literatura sobre hot spots, Weisburd (2014) indica que há um consenso sobre tal concentração da criminalidade em micro localidades e sobre a efetividade de se atuar sobre elas. Neste âmbito, existem diferentes estratégias para intervir em um hot spot (respeitando as particularidades de cada cidade), com evidências sugerindo eficácia de algumas delas, como por exemplo:

  1. Patrulhamento por poucos minutos em cada hot spot;
  2. Rondas aleatórias entre hot spots;
  3. Patrulhamento a pé em rotas pré-determinadas;
  4. Medidas sociais preventivas que alteram as características locais.

Além disso, o autor destaca que, de forma geral, a visão da população sobre a legitimidade e a confiança na polícia desempenha um papel importante na efetividade da intervenção por meio da cooperação dos cidadãos.

A intuição por trás do policiamento por hot spots é que estes locais, por uma combinação de motivos (não necessariamente claros), concentram mais oportunidades para os criminosos cometerem delitos do que o restante do território. Portanto, o patrulhamento reduziria estas oportunidades nestes locais, e, com isso, o nível de crime total da cidade. Aqui se fundamenta a hipótese de que o crime também não se deslocaria integralmente (efeito de transbordamento) ao se focalizar o patrulhamento nos hot spots, uma vez que outros locais não seriam tão atrativos para os criminosos.

Na literatura, esta hipótese é somente evidenciada quando se analisa regiões próximas à intervenção³. Quando se considera regiões distantes, entretanto, existem lacunas sobre os efeitos de transbordamento, não sendo claro se há criação de outros hot spots. Ademais, não se sabe quais os efeitos desse tipo de atuação no longo prazo, inclusive se a redução se manteria ou se o nível de criminalidade retornaria ao original.

Nota-se ainda que a maioria dos estudos sobre o tema se limita aos EUA ou a países desenvolvidos, havendo uma carência de evidências quanto a eficiência de tais intervenções em países em desenvolvimento, em especial no Brasil e em seus pares latinos. Isto é, não há clareza se essas evidências também são válidas para países com as características brasileiras (validade externa).

Buscando dar luz a essa lacuna e identificar se haveria mudanças sobre a concentração da criminalidade quando da ocorrência de uma onda de violência, Chainey e Monteiro (2019) analisam 7 municípios⁴ do estado do Rio de Janeiro, dentre eles a capital, nos anos de 2015 e 2016. Os autores dividem as cidades em áreas (células) de 150m x 150m – aproximadamente o tamanho de um quarteirão –, definindo a proporção do território de cada cidade que concentra 25% e 50% do crime (especificamente assaltos). Além disso, testam se o aumento exorbitante do número de roubos entre 2015 e 2016 no estado afetaria tal concentração. Os resultados para a cidade do Rio de Janeiro se encontram na Tabela 1, abaixo.

TABELA 1: Concentração de Assaltos na Cidade do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2015 2016
Proporção de células que contém 25% dos assaltos ocorridos 0,8% 0,8%
Proporção de células que contém 50% dos assaltos ocorridos 3,3% 3,5%
Fonte: Elaboração própria com base em Chainey e Monteiro (2019)

Nela, pode-se ver que apenas 0,8% de todo o território da capital fluminense concentra 25% de todos os roubos da cidade para os anos de 2015 e 2016, passando para algo entre 3,3% e 3,5% quando se considera metade de todos os assaltos cometidos nestes anos. Os resultados encontrados para os outros municípios foram semelhantes⁵, contribuindo com evidências para a Lei da Concentração do Crime, indicando que ondas de criminalidade não afetariam a dinâmica concentradora dos crimes em micro localidades da cidade. Apesar do estudo se restringir a roubos, sabe-se que a tendência concentradora de criminalidade na capital se repete para outros delitos, como furtos, tráfico de drogas, homicídios, entre outros, caracterizando diferentes tipos de hot spots.

Hot Spots no Contexto da Operação

O que foi visto até agora indica que a premissa básica do patrulhamento por hot spots é coerente com a dinâmica de criminalidade da cidade do Rio de Janeiro – i.e., há concentração de crimes em micro localidades. Assim sendo, as diferentes estratégias de atuação sobre estes locais, apresentadas anteriormente, poderiam aumentar a eficácia no combate ao crime em nosso município. Neste âmbito, deve-se notar que o Segurança Presente apresenta muitas das características que definem tais estratégias.

Primeiramente, destaca-se seu patrulhamento direcionado. O programa atua não sobre bairros como um todo, mas se restringe a quarteirões específicos e pré determinados, ou seja, micro localidades. Contudo, frente à sua falta de transparência, não se sabe em que medida estas se configuram como hot spots e se as escolhas dos locais foram baseadas em critérios técnicos ou por influência do setor privado.

Em segundo lugar, o Segurança Presente introduz o patrulhamento ostensivo e a pé. Os policiais e agentes da operação são facilmente identificados por coletes e transitam continuamente nas ruas selecionadas, aumentando a sensação de segurança e afirmando a ocupação do território. Cabe ainda compreender como possíveis efeitos de transbordamento do crime se concretizariam na realidade da cidade do Rio de Janeiro, e se poderiam ser amplificados em face da pré determinação das rotas do patrulhamento, que poderiam ser antecipadas pelos criminosos.

O programa introduz ainda outras estratégias de intervenção em hot spots com ênfase na transformação do espaço público, e aumento da legitimidade e confiança da população nas forças de segurança, condizentes com a literatura. A presença dos assistentes sociais na base das operações, ao auxiliar moradores de rua e usuários de drogas, possui potencial de reduzir oportunidades de se cometer crimes nestas áreas. Em relação à legitimidade e confiança, a “abordagem cidadã”, que resguarda a população de possíveis abusos, e o canal de comunicação direta com os agentes de cada operação podem ser formas de fortalecer a relação do cidadão com o policial.

Nota-se que o Segurança Presente, apresenta uma série de características que definem seu potencial como política de intervenção em hot spot. Contudo, para maximizar seus resultados, frente a restrição de insumos financeiros e físicos, uma condição central deve ser atendida: o programa tem que ser focalizado aonde o crime se concentra.

Não obstante, como discutido anteriormente, não há clareza se as ruas escolhidas pelo programa são as mais violentas dentro do bairro. Tal concentração tampouco seria suficiente, sendo necessário que as áreas beneficiadas pelo programa concentrem o crime na cidade como um todo. Dessa forma, atuar apenas no hot spots do bairro, invés de atuar sobre os hot spots da cidade – ou, no caso mais grave, focalizar o programa em micro localidades que sequer concentram criminalidade – torna o combate ao crime ineficiente e pode servir como agravante da desigualdade de segurança entre os bairros do Rio de Janeiro.

Conclusão

A expansão desenfreada da operação, promovida pelo atual Governo do Estado, pode torná-la ineficiente exatamente por restrições financeiras e de pessoal, assim como por uma possível má focalização. Além disso, questiona-se até que ponto um programa de patrulhamento de larga escala – como o Segurança Presente vem se concretizando – deveria estar sob a responsabilidade de uma secretaria do Governo e não incorporado ao planejamento e atividade da PMERJ.

Conclui-se que o Segurança Presente – mesmo que acidentalmente, devido à falta de planejamento – possui muitas características semelhantes ao policiamento por hot spots, e, portanto, caso focalizado corretamente, se apresentaria como uma política de segurança com potencial de reduzir a criminalidade na cidade. No próximo artigo desta série, será analisada a focalização do programa nas suas duas primeiras ondas. Para isto, serão comparados os índices de criminalidade entre os bairros da cidade, de forma a entender se a implementação foi, ao menos, justificada, discutindo a influência do financiamento privado e outras questões relevantes.



Bernardo Duque é um dos idealizadores da Iniciativa RioMais. Formando em Economia pela PUC-Rio com intercâmbio acadêmico na Universidade de Leeds. Tem experiência profissional em consultoria estratégica de gestão pública e em consultoria econômica com foco em infraestrutura e políticas públicas. Possui também experiência como assistente de pesquisa na área de segurança pública.


Manuel Faria é um dos membros da Iniciativa RioMais. Formando em Economia pela PUC-Rio e certificado em Economia Comportamental pela Universidade de Warwick. Possui experiência profissional no Setor Elétrico e em consultoria econômica nas áreas de infraestrutura e politicas públicas.


* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Imprensa/Governo do Estado do Rio de Janeiro

Notas de Rodapé
[1] Por um breve período, a responsabilidade do programa foi transferida para Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), retornando depois à SEGOV.
[2] Ele ainda tenta definir uma banda para as concentrações de 25% e 50% do crime, usando uma amostra de 8 cidades com características diferentes (como renda, população, número de anos observados, entre outras), dentre elas apenas uma não se localizava nos EUA (Tel Aviv).
[3] Ver Braga et al. (2012)
[4] Rio de Janeiro, Duque de Caxias, São Gonçalo, Nova Iguaçu, Niterói, São João do Meriti e Belford Roxo.
[5] Com exceção de São João do Meriti, que apresentou níveis de concentração também altos, porém menores.

Referências Bibliográficas
Becker, G.S., 1968. Crime and punishment: An economic approach. In The economic dimensions of crime (pp. 13-68). Palgrave Macmillan, London.

Braga, A., Papachristos, A. and Hureau, D., 2012. Hot spots policing effects on crime. Campbell Systematic Reviews, 8(1), pp.1-96.

Chainey, S.P. and Monteiro, J., 2019. The dispersion of crime concentration during a period of crime increase. Security Journal, 32(3), pp.324-341.

Weisburd, D. and Telep, C.W., 2014. Hot spots policing: What we know and what we need to know. Journal of Contemporary Criminal Justice, 30(2), pp.200-220.

Weisburd, D., 2015. The law of crime concentration and the criminology of place. Criminology, 53(2), pp.133-157.

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O Rio em transe

*Por Cláudio Frischtak

Nossa cidade está morrendo.

Cidades morrem. Podem não desaparecer, mas deixam de ser entes com dinamismo, com capacidade de atrair gente nova, gerar oportunidades. Saem os jovens, se vão os mais talentosos, criativos e empreendedores, e as empresas naturalmente os seguem. Perde-se assim a energia vital que faz das cidades espaços vibrantes de inovação, competição e cooperação, mas também de civilidade, acolhimento das diferenças.

Como as cidades morrem? Por vezes, o poder público — e a sociedade — não reagem a tempo a mudanças econômicas, a exemplo de Detroit. Há casos em que o eixo de poder se deslocou — tal qual Calcutá, quando não mais capital do Raj britânico. Mas as forças mais destrutivas para uma cidade são derivadas da ausência de Estado, quando o crime organizado impõe suas regras, e — pior — se entranha e apoia-se no poder político. Foi a máfia — em suas diferentes versões — que levou à decadência de Nápoles, Palermo e outras cidades; não mais se recuperaram. Medellín é talvez a grande exceção: resgatada das narcomilícias pela sociedade com apoio do governo, renasceu.

Nossa cidade — o Rio — está aos poucos morrendo. Em anos recentes, sofreu um processo agudo, sem precedentes, de deterioração: da sua economia; da qualidade dos seus espaços públicos; da ordem nas ruas e praças, tomadas pela informalidade e ilegalidade; e do respeito com o cidadão pelas autoridades que encarnam o poder público — o prefeito; os legisladores; os órgãos de controle.

Talvez o mais grave: tal qual no sul da Itália e em Medellín, as milícias — em conflito com ou associadas aos narcotraficantes — exercem controle crescente em territórios onde se estima que more um terço da população do Rio. Há mais de 60 anos desfilava pela Avenida Atlântica num carro de luxo conversível e acompanhado de sua metralhadora um político folclórico, que acreditava que lugar de bandido era o cemitério. O ovo da serpente. Essa visão foi se transmutando ao longo dos anos, e quando as milícias fincaram pé, muitos acreditavam que eram um “mal menor”. Outros — políticos hoje proeminentes — as enalteciam. Agora desafiam o poder público, e o fazem muitas vezes com certeza da impunidade. Expande-se a milícia, o contrabando de armas, o narcotráfico, e o espaço do cidadão e da legalidade se encolhe. Aos poucos, o Rio como centro de civilidade perde o viço; as enormes economias que a cidade propicia, exatamente por compartilharmos ideias e recursos num mesmo espaço, se esvaem.

Temos que dar um basta neste processo, antes que se torne irreversível. Medellín chegou próximo ao ponto de não retorno; reagiu. E nós? Está nas mãos da sociedade elegermos uma administração comprometida com a recuperação da cidade, juntando os melhores talentos para resgatar o Rio da incompetência, da má-fé, dos fundamentalismos e visões tacanhas, da violência e bandidagem. Antes que seja tarde.

Necessitamos de uma nova política para o Rio. Primeiro, um compromisso inarredável com o bem-estar de todos os cidadãos, e não apenas aqueles da base eleitoral, as “igrejas”, os amigos. O Estado é impessoal; e laico. Segundo, é essencial lidar com absoluta integridade com a coisa pública. A corrupção deve ser extirpada em qualquer instância, com uso de novas tecnologias que deem transparência aos atos do governo. Terceiro, o administrador público é o responsável pelo dinheiro do contribuinte; deve — a todos os momentos — fazer o uso desses recursos que trazem maiores retornos para a sociedade. Quarto, todos os serviços públicos do município devem ser bem geridos, para assegurar uma cidade que funcione para pessoas e empresas. Finalmente, deve-se cobrar dedicação absoluta à recuperação dos espaços públicos, das áreas de convivência em todos os bairros e regiões da cidade. O abandono do espaço público estimula a informalidade e própria ilegalidade. Destrói o comércio, e é o sintoma mais aparente da decadência do Rio.



Cláudio Frischtak é economista.


* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Texto publicado com autorização do autor. Originalmente divulgado no Jornal O Globo.
*** Foto de Divulgação: Monica Silva/Unsplash