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O Rio em transe

*Por Cláudio Frischtak

Nossa cidade está morrendo.

Cidades morrem. Podem não desaparecer, mas deixam de ser entes com dinamismo, com capacidade de atrair gente nova, gerar oportunidades. Saem os jovens, se vão os mais talentosos, criativos e empreendedores, e as empresas naturalmente os seguem. Perde-se assim a energia vital que faz das cidades espaços vibrantes de inovação, competição e cooperação, mas também de civilidade, acolhimento das diferenças.

Como as cidades morrem? Por vezes, o poder público — e a sociedade — não reagem a tempo a mudanças econômicas, a exemplo de Detroit. Há casos em que o eixo de poder se deslocou — tal qual Calcutá, quando não mais capital do Raj britânico. Mas as forças mais destrutivas para uma cidade são derivadas da ausência de Estado, quando o crime organizado impõe suas regras, e — pior — se entranha e apoia-se no poder político. Foi a máfia — em suas diferentes versões — que levou à decadência de Nápoles, Palermo e outras cidades; não mais se recuperaram. Medellín é talvez a grande exceção: resgatada das narcomilícias pela sociedade com apoio do governo, renasceu.

Nossa cidade — o Rio — está aos poucos morrendo. Em anos recentes, sofreu um processo agudo, sem precedentes, de deterioração: da sua economia; da qualidade dos seus espaços públicos; da ordem nas ruas e praças, tomadas pela informalidade e ilegalidade; e do respeito com o cidadão pelas autoridades que encarnam o poder público — o prefeito; os legisladores; os órgãos de controle.

Talvez o mais grave: tal qual no sul da Itália e em Medellín, as milícias — em conflito com ou associadas aos narcotraficantes — exercem controle crescente em territórios onde se estima que more um terço da população do Rio. Há mais de 60 anos desfilava pela Avenida Atlântica num carro de luxo conversível e acompanhado de sua metralhadora um político folclórico, que acreditava que lugar de bandido era o cemitério. O ovo da serpente. Essa visão foi se transmutando ao longo dos anos, e quando as milícias fincaram pé, muitos acreditavam que eram um “mal menor”. Outros — políticos hoje proeminentes — as enalteciam. Agora desafiam o poder público, e o fazem muitas vezes com certeza da impunidade. Expande-se a milícia, o contrabando de armas, o narcotráfico, e o espaço do cidadão e da legalidade se encolhe. Aos poucos, o Rio como centro de civilidade perde o viço; as enormes economias que a cidade propicia, exatamente por compartilharmos ideias e recursos num mesmo espaço, se esvaem.

Temos que dar um basta neste processo, antes que se torne irreversível. Medellín chegou próximo ao ponto de não retorno; reagiu. E nós? Está nas mãos da sociedade elegermos uma administração comprometida com a recuperação da cidade, juntando os melhores talentos para resgatar o Rio da incompetência, da má-fé, dos fundamentalismos e visões tacanhas, da violência e bandidagem. Antes que seja tarde.

Necessitamos de uma nova política para o Rio. Primeiro, um compromisso inarredável com o bem-estar de todos os cidadãos, e não apenas aqueles da base eleitoral, as “igrejas”, os amigos. O Estado é impessoal; e laico. Segundo, é essencial lidar com absoluta integridade com a coisa pública. A corrupção deve ser extirpada em qualquer instância, com uso de novas tecnologias que deem transparência aos atos do governo. Terceiro, o administrador público é o responsável pelo dinheiro do contribuinte; deve — a todos os momentos — fazer o uso desses recursos que trazem maiores retornos para a sociedade. Quarto, todos os serviços públicos do município devem ser bem geridos, para assegurar uma cidade que funcione para pessoas e empresas. Finalmente, deve-se cobrar dedicação absoluta à recuperação dos espaços públicos, das áreas de convivência em todos os bairros e regiões da cidade. O abandono do espaço público estimula a informalidade e própria ilegalidade. Destrói o comércio, e é o sintoma mais aparente da decadência do Rio.



Cláudio Frischtak é economista.


* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Texto publicado com autorização do autor. Originalmente divulgado no Jornal O Globo.
*** Foto de Divulgação: Monica Silva/Unsplash