Categorias
Sem Categoria

Crime e Juventude: o que pode ser feito no Rio de Janeiro?

*Por Eduarda Schmidt e Maria Clara Soares, membros da Liga de Políticas Públicas da PUC-Rio

  1. CRIME NA ADOLESCÊNCIA, SEGUNDO A CIÊNCIA

    Uma das explicações para a grande concentração do crime entre jovens é a existência de um pico de violência e agressividade durante a transição da infância para adolescência. Diversas evidências, como o relatório da Corporación Andina de Fomento (2014), apontam que a maioria dos crimes são cometidos por jovens. Piquero, Farrington e Blumstein (2007) e Blokland e Nieuwbeerta (2009) concluíram que a entrada em atividades criminosas se dá durante a fase dos 8 aos 14 anos, atingindo um pico na adolescência, entre os 15 e 19 anos. Já o abandono da criminalidade se dá, em média, entre 20 e 29 anos, o que pode ser explicado neurológica e psicologicamente. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) (Beck [TV1] , 2011) mostra que uma das principais razões para o comportamento violento dos jovens tem origem em questões biológicas, sociais e cognitivas (Observatorio del Delito, 2010), que resultam atitudes impulsivas nessa faixa etária (Reyna e Farley, 2006).

  2. UM PANORAMA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Os dados para o Rio de Janeiro apresentados no relatório de Juventude e Crime, do Instituto de Segurança Pública, corroboram as evidências apresentadas acima: 52,4% das autuações em flagrante ocorridas no Estado entre 2010 e 2014 foram direcionadas a jovens entre 15 e 24 anos e atingem um pico de ocorrência aos 17 anos, tendendo a reduzir com o aumento da idade. Os dados permitem também estabelecer alguns padrões por faixa etária, tais como os tipos de crimes cometidos, a velocidade de renitência e a tendência de cometer atos infracionais
    desacompanhados.

    Em relação à renitência – definida juridicamente como pessoas que são pegas em flagrante mais de uma vez- dentre todos os 20.076 autuados no estado do Rio de Janeiro ano de 2010, 7.157 renitiram até o final de 2014, representando uma taxa de 34,6%. Analisando-se a distribuição da renitência por faixa etária, há um pico entre os 16 e 17 anos, com taxa de 35%, enquanto entre 18
    e 19 anos a taxa é de 27%. Em média, um adolescente de 16-17 anos volta a ser autuado 16 meses depois, enquanto jovens na faixa dos 18-19 demoram 20 meses.

    Por mais que o pico de violência seja ultrapassado durante a fase dos 20 anos, as consequências de ter cometido atividade criminal na adolescência continuam a impactar o indivíduo durante a idade adulta, por exemplo, dificultando o acesso ao mercado de trabalho devido ao seu histórico criminal (Finlay, 2008). Diante disso, é importante pensar em políticas públicas que ajam ex-ante, no sentido de prevenir a entrada de jovens na atividade criminal mais do que discutir a possibilidade de uma redução da maioridade penal, cujas evidências já indicaram ser uma medida que reduz a probabilidade do jovem terminar o ensino médio, além de aumentar a probabilidade dele cometer crimes na fase adulta (Aizer & Doyle, 2015).

    Ainda, analisando o contexto do Rio de Janeiro, [TV2] nota-se que a maioridade penal por si só não induz uma redução da atividade criminal: 7,6% do total das autuações em flagrante ocorridas no estado entre 2010 e 2014 foram direcionadas a adolescentes de 17 anos, ao mesmo tempo que 6,8% foram direcionadas a jovens de 18 anos, representando uma diferença de apenas 0,8%.[TV3]

  3. POLÍTICAS PÚBLICAS: O QUE, DE FATO, FUNCIONA?

    Ao se discutir intervenções com foco em prevenção ao crime na juventude, dois tipos de abordagens¹ são mais comuns: programas de treinamento e emprego para jovens ou policiamento ostensivo – opção historicamente escolhida no estado do Rio de Janeiro, onde, somente no ano de 2017, 174 crianças e jovens morreram em decorrência de intervenções policiais (Dossiê da Criança e do Adolescente, 2018). Entretanto, uma literatura mais recente vem apresentando uma nova
    abordagem que busca mitigar crime e violência durante a adolescência através da terapia cognitivo-comportamental. O que as evidências indicam é que esse tipo de abordagem não apenas parece ser mais eficiente, como também pode ser uma opção relativamente mais barata, por se tratar de uma política de curta duração e que é focalizada em homens jovens de baixa renda.

    O foco principal de programas sociais que utilizam a terapia cognitivo-comportamental é alterar a maneira com que adolescentes tomam decisões, fazendo com que eles passem a refletir com mais cuidado antes de realizar qualquer tipo ação. Para isso, utiliza-se de atividades simples que desenvolvem autocontrole, habilidades sociais e inteligência emocional [TV5] . Um exemplo bem-sucedido desse tipo de política foi o Becoming a Man, programa aplicado em escolas de Chicago tendo como base a psicologia da automaticidade (Heller et al., 2017)- uma teoria segundo a qual todos os seres humanos têm a tendência de desenvolver respostas automáticas que condizem com o ambiente no qual se está inserido. Isso faz com que adolescentes que vivem em regiões com altos índices de violência tendam a reagir agressivamente a qualquer tipo de situação na qual se sentem confrontados.

    Um tipo de atividade realizada com os participantes do Becoming a Man consistiu em dar um objeto para um jovem e pedir para que algum colega o pegasse para si, o que, para muitos dos participantes, foi feito por meio da força. Em seguida, um orientador conversava com os adolescentes e demonstrava que simplesmente ter pedido o objeto para o colega teria funcionado.
  1. EVIDÊNCIAS

    A avaliação do Becoming a Man apontou que, em comparação aos alunos que não tiveram acesso à terapia-cognitivo comportamental, houve redução do número de prisões por aluno e redução do comportamento violento dos participantes – efeitos que perduraram durante um ano após o final do programa – além de aumento na probabilidade do aluno participante terminar o ensino médio no tempo certo. Ainda, pesquisadores da avaliação conduziram testes com os
    participantes, os quais demonstraram que o programa foi, de fato, capaz de gerar mudanças comportamentais, pois os participantes passaram a levar mais tempo para tomar decisões ao invés e agir de forma automática, como faziam previamente.

    Há mais duas avaliações de intervenções similares (JPAL, 2017) que também apresentaram resultados positivos: detentos que participaram um programa de TCC realizado em centros de detenção temporária de jovens, também em Chicago, tornaram-se menos propensos a serem
    readmitidos dentro de um período de 2 meses – efeito que perdurou durante 1 ano e meio após o fim do programa – além de uma intervenção realizada na Libéria, que combinou um programa de
    terapia cognitivo-comportamental com um programa de transferência de renda para homens jovens e obteve resultados similares aos do Becoming a Man.

    Vale ainda ressaltar que experiência avaliada na Libéria é um caso interessante de ser explorado. Ambas as experiências com programas de TCC realizadas em Chicago foram implementadas em instituições pré-existentes, como escola e centro de detenção de jovens, dois
    ambientes nos quais há mais facilidade de se atingir o público-alvo do programa. Em contrapartida, a intervenção na Libéria foi conduzida por uma ONG local que, através de suas conexões e de sua forte reputação com líderes comunitários, conseguiu, de forma bastante efetiva, identificar o público de interesse e atraí-lo a participar do programa.

  2. APLICAÇÃO NO RIO DE JANEIRO

    O Rio de Janeiro historicamente adota políticas de combate ao crime pautadas na repreensão, como é o caso do policiamento ostensivo. No entanto, novas abordagens de política pública já foram avaliadas e também se mostram possíveis. Nesse sentido, é importante explorar outros tipos de políticas de combate ao crime e à violência, principalmente aquelas que ajam no sentido de prevenir a entrada de jovens na criminalidade.

    Apesar de programas de terapia cognitiva-comportamental já terem sido avaliados em outros contextos e terem se mostrado eficazes e custo-efetivos, isoladamente, eles não são suficientes. Os problemas do Rio de Janeiro referentes à violência e à criminalidade são extensos e exigem mudanças que sejam capazes de atacar as desigualdades estruturais que levam os indivíduos à atividade criminal.

Idealizada na PUC-Rio e focada na realidade brasileira, a Liga de Políticas Públicas da PUC-Rio visa o estudo e a discussão das boas práticas políticas. É também parceira da Iniciativa RioMais.


* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor. ** Foto de Divulgação: Ari Spada/Unsplash

Notas de Rodapé
[1]https://www.povertyactionlab.org/sites/default/files/Day1_Part2_CaseStudy.pdf

Referências Bibliográficas

Aizer, A., & Doyle Jr, J. J. (2015). Juvenile incarceration, human capital, and
future crime: Evidence from randomly assigned judges. The Quarterly Journal of Economics, 130(2), 759-803.

BECK, J. S. (2011). “Cognitive Therapy: Basics and Beyond”. The Guilford Press.

Blokland, A. A. J. e Nieuwbeerta, P. (2009). “Life Course Criminology”.
International Handbook of Criminology, p. 51-92.

BRASIL (1990). “Estatuto da criança e do adolescente”. Lei nº .069/1990.
Presidência da República, Casa Civil.

Caballero, B. (2016). JUVENTUDE E CRIME.

Corporación Andina de Fomento (2014). “Por una América Latina más segura: Una nueva perspectiva para prevenir y controlar el delito”.

Dossiê criança e adolescente: 2018. Org: Flávia Vastano Manso e Luciano de Lima Gonçalves. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública, RioSegurança, 2018.

FALCONI, Romeu (1998). Sistema Presidial: Reinserção Social? São Paulo:
Ícone.

Finlay, K. (2008). “Effect of employer access to criminal history data on the labor market outcomes of ex-offenders and non-offenders”. National Bureau of Economic Research. Working Paper 13935.

Heller, S. B., Shah, A. K.,Guryan, J., Ludwig, J., Mullainathan, S., Pollack, H. A. (2015). “Thinking, Fast and Slow? Some Field Experiments to Reduce Crime and Dropout in Chicago”. National Bureau of Economic Research. Working Paper 21178.

J-PAL Policy Bulletin (2017). “Practicing Choices, Preventing Crime.”
Cambridge, MA: Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab.
Morse, B. “Case Study: Cognitive Behavioral Therapy in Liberia”. J-PAL
Global.

Observatorio del Delito (2010). “Niños, niñas y adolescentes: víctimas y
victimarios”. Dirección de Investigación Criminal e INTERPOL.
Piquero, A. R., Farrington, D. P., Blumstein, A. (2007). “Key Issues in Criminal

Career Research: New Analyses of the Cambridge Study in Delinquent
Development”. Cambridge University Press.

Reyna, V., Farley, F. (2006). “Risk and rationality in adolescent decision
making: implications for theory, practice, and public policy”. Psychological
Science in the Public Interest, 7(1), p. 1-44.

Categorias
Texto

Programa Segurança Presente (Parte 1/2)

*Por Bernardo Duque e Manuel Faria

Até o final de 2018, a Operação Segurança Presente era realizada em apenas cinco bairros da cidade do Rio de Janeiro – Lapa, Lagoa, Aterro do Flamengo, Méier e Centro. Entretanto, com a eleição do atual governador, Wilson Witzel, em apenas um ano, o programa se expandiu para quase 20 bairros, abrangendo outros municípios do estado, como Nova Iguaçu e Duque de Caxias.

O Segurança Presente introduz, em pontos específicos da cidade, um patrulhamento por policiais e agentes civis – com coletes característicos – buscando prevenir a atuação de criminosos. Mesmo se tratando de uma política estadual, o programa contou, em diversos momentos, com recursos da prefeitura e de comerciantes do Rio de Janeiro, e dada sua focalização – em bairros notórios da cidade –, apresenta crescente relevância para o município em termos de segurança pública.

Como toda política pública, a alocação de verbas dos contribuintes para o programa significa, necessariamente, deixar de investir esses recursos – ainda mais escassos no cenário de restrições fiscais atuais – em outras políticas de segurança ou de outras áreas (para os familiarizados com o termo, implica num custo de oportunidade). Logo, é importante esclarecer o problema que o programa busca resolver, como ele funciona e a que custos, se ele é a melhor alternativa para resolver o problema identificado, e quais são seus resultados reais.

Este artigo inicia uma série de publicações a respeito do Segurança Presente. Aqui o programa será apresentado, destacadas suas origens e seu funcionamento, e discutido à luz da literatura criminal. Mais especificamente, enfatizando as duas primeiras ondas de implementação: 1) Lapa e 2) Lagoa, Aterro do Flamengo e Méier.

O surgimento do Segurança Presente

O programa surgiu frente à ocorrência de três assassinatos em uma semana no bairro da Lapa – um estudante vítima de latrocínio no dia 1º de dezembro de 2013, um morador de rua assassinado no dia seguinte e um dono de bar da região, também vítima de latrocínio, dias depois. Isso desencadeou pressões vindas dos moradores e dos comerciantes locais para que alguma solução fosse dada ao problema da violência.

Nesse contexto, o Lapa Presente foi anunciado em 17 de dezembro de 2013, duas semanas após a primeira morte, e implementado em 1º de janeiro de 2014, apenas um mês após as ocorrências. Isso sugere fortemente que o desenho do programa se deu de forma responsiva, imediata e não planejada, e que, portanto, sua formulação teve muito mais uma motivação política do que técnica. Ademais, dado o curtíssimo tempo em que a política foi elaborada, pode-se argumentar que dificilmente houve a realização de um diagnóstico (com suficiente rigor) e a consideração de alternativas para se resolver o problema identificado da melhor maneira possível.

A segunda onda de implementação, por sua vez, perpetuando o caráter reativo do programa, foi desencadeada por uma série de crimes em um bairro da zona sul da cidade. Em abril de 2015, um adolescente levou uma facada na Lagoa Rodrigo de Freitas, e no mesmo dia outro homem foi roubado e esfaqueado no local. Porém, o caso de maior destaque à época foi o de um ciclista vítima de latrocínio na mesma região. Os crimes, novamente, desencadearam protestos e pressões vindas da sociedade, o que, em poucos meses, levou à implementação, do Méier Presente, do Lagoa Presente e do Aterro Presente no dia 1º de dezembro de 2015. Estes dois últimos bairros sediariam também eventos nas Olimpíadas em 2016, o que certamente foi considerado para receberem o programa.

O funcionamento da operação

A operação se baseia no patrulhamento ostensivo – isto é, exposto e declarado – e restrito a determinadas ruas do bairro escolhido (proporção pequena em relação ao tamanho total do bairro), assim como na comunicação ativa – estabelecida por meio de disque denúncia específico em cada operação – com moradores e comerciantes locais, a fim de reduzir as oportunidades de se cometer crimes. Ou seja, trata-se de um policiamento preventivo e direcionado cujo objetivo é inibir os criminosos via maior presença policial. Essa ideia é coerente com a explicação racional do crime descrita por Becker (1968), na qual o aumento nas expectativas de apreensão e punição desincentivariam criminosos a cometer delitos, mas oposta às práticas de policiamento reativo – que atua sobre crimes que estão ocorrendo ou que já ocorreram, ao invés de tentar preveni-los – hoje estabelecidas pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).

Em seu projeto piloto – o Lapa Presente –, totalmente financiado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, foram alocados policiais militares (PMs) previamente designados, guardas municipais e agentes da Secretaria de Estado do Governo (SEGOV), responsável pelo programa¹. Eram formadas duplas ou trios, sempre com a presença de ao menos um PM e um agente civil, realizando rondas a pé, de bicicleta ou por viaturas (este caso mais raro devido aos custos associados). O agente era responsável somente por filmar as abordagens – sem possuir poder de polícia –, garantindo a chamada “abordagem cidadã”, cujo objetivo era evitar abusos policiais e, ao mesmo tempo, resguardar os agentes de possíveis falsas acusações durante as rondas.

A segunda onda de implementação, por sua vez, foi totalmente financiada pela Fecomércio/RJ, mantendo a lógica do patrulhamento por rondas de duplas ou trios (presente em todos os bairros do programa), porém o efetivo de policiais militares deixou de ser totalmente alocado previamente. Apenas algumas vagas eram fixas a fim de manter a cultura da operação, enquanto as demais eram destinadas – além das disponíveis aos agentes civis – aos policiais militares que quisessem trabalhar durante seus horários de folga. Neste âmbito, o Decreto 45.475 de 27/11/2015 instituiu o Programa de Estímulo Operacional (PEOp), que regulamentava a remuneração de horas extras para policiais militares em operações da Secretaria de Estado. Assim, o programa passou a competir com o já existente Regime Adicional de Serviços (RAS), que remunera a hora extra dos policiais que atuam como reforço no efetivo dos batalhões.

Outro aspecto importante do programa, porém de pouco conhecimento do público, é seu caráter social. Na base das operações de cada bairro há assistentes sociais, responsáveis por atender moradores de rua e usuários de drogas em situações de vulnerabilidade social, acolhendo-os e auxiliando-os.

O que diz a literatura?

No fim da década de 80, surgiu uma nova literatura dentro da área de Segurança Pública, chamada Criminology of Place ou Criminologia do Lugar (em tradução livre). Weisburd (2015) argumenta que com o advento desta nova área, o foco da unidade de análise da criminologia passou das pessoas para as micro localidades. Isto é, antes, tentava-se responder o porquê de as pessoas cometerem crimes, e depois a busca mudou para o porquê de os crimes ocorrerem em determinados locais. Micro localidades são conjuntos de ruas ou segmentos de ruas, ou seja, uma agregação territorial menor que o nível do bairro. No artigo, o autor visa definir uma “Lei da Concentração do Crime”: apenas uma parte pequena do território concentra a maior parte da ocorrência de crimes (chamados de hot spots)².

Em sua revisão de literatura sobre hot spots, Weisburd (2014) indica que há um consenso sobre tal concentração da criminalidade em micro localidades e sobre a efetividade de se atuar sobre elas. Neste âmbito, existem diferentes estratégias para intervir em um hot spot (respeitando as particularidades de cada cidade), com evidências sugerindo eficácia de algumas delas, como por exemplo:

  1. Patrulhamento por poucos minutos em cada hot spot;
  2. Rondas aleatórias entre hot spots;
  3. Patrulhamento a pé em rotas pré-determinadas;
  4. Medidas sociais preventivas que alteram as características locais.

Além disso, o autor destaca que, de forma geral, a visão da população sobre a legitimidade e a confiança na polícia desempenha um papel importante na efetividade da intervenção por meio da cooperação dos cidadãos.

A intuição por trás do policiamento por hot spots é que estes locais, por uma combinação de motivos (não necessariamente claros), concentram mais oportunidades para os criminosos cometerem delitos do que o restante do território. Portanto, o patrulhamento reduziria estas oportunidades nestes locais, e, com isso, o nível de crime total da cidade. Aqui se fundamenta a hipótese de que o crime também não se deslocaria integralmente (efeito de transbordamento) ao se focalizar o patrulhamento nos hot spots, uma vez que outros locais não seriam tão atrativos para os criminosos.

Na literatura, esta hipótese é somente evidenciada quando se analisa regiões próximas à intervenção³. Quando se considera regiões distantes, entretanto, existem lacunas sobre os efeitos de transbordamento, não sendo claro se há criação de outros hot spots. Ademais, não se sabe quais os efeitos desse tipo de atuação no longo prazo, inclusive se a redução se manteria ou se o nível de criminalidade retornaria ao original.

Nota-se ainda que a maioria dos estudos sobre o tema se limita aos EUA ou a países desenvolvidos, havendo uma carência de evidências quanto a eficiência de tais intervenções em países em desenvolvimento, em especial no Brasil e em seus pares latinos. Isto é, não há clareza se essas evidências também são válidas para países com as características brasileiras (validade externa).

Buscando dar luz a essa lacuna e identificar se haveria mudanças sobre a concentração da criminalidade quando da ocorrência de uma onda de violência, Chainey e Monteiro (2019) analisam 7 municípios⁴ do estado do Rio de Janeiro, dentre eles a capital, nos anos de 2015 e 2016. Os autores dividem as cidades em áreas (células) de 150m x 150m – aproximadamente o tamanho de um quarteirão –, definindo a proporção do território de cada cidade que concentra 25% e 50% do crime (especificamente assaltos). Além disso, testam se o aumento exorbitante do número de roubos entre 2015 e 2016 no estado afetaria tal concentração. Os resultados para a cidade do Rio de Janeiro se encontram na Tabela 1, abaixo.

TABELA 1: Concentração de Assaltos na Cidade do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro20152016
Proporção de células que contém 25% dos assaltos ocorridos0,8%0,8%
Proporção de células que contém 50% dos assaltos ocorridos3,3%3,5%
Fonte: Elaboração própria com base em Chainey e Monteiro (2019)

Nela, pode-se ver que apenas 0,8% de todo o território da capital fluminense concentra 25% de todos os roubos da cidade para os anos de 2015 e 2016, passando para algo entre 3,3% e 3,5% quando se considera metade de todos os assaltos cometidos nestes anos. Os resultados encontrados para os outros municípios foram semelhantes⁵, contribuindo com evidências para a Lei da Concentração do Crime, indicando que ondas de criminalidade não afetariam a dinâmica concentradora dos crimes em micro localidades da cidade. Apesar do estudo se restringir a roubos, sabe-se que a tendência concentradora de criminalidade na capital se repete para outros delitos, como furtos, tráfico de drogas, homicídios, entre outros, caracterizando diferentes tipos de hot spots.

Hot Spots no Contexto da Operação

O que foi visto até agora indica que a premissa básica do patrulhamento por hot spots é coerente com a dinâmica de criminalidade da cidade do Rio de Janeiro – i.e., há concentração de crimes em micro localidades. Assim sendo, as diferentes estratégias de atuação sobre estes locais, apresentadas anteriormente, poderiam aumentar a eficácia no combate ao crime em nosso município. Neste âmbito, deve-se notar que o Segurança Presente apresenta muitas das características que definem tais estratégias.

Primeiramente, destaca-se seu patrulhamento direcionado. O programa atua não sobre bairros como um todo, mas se restringe a quarteirões específicos e pré determinados, ou seja, micro localidades. Contudo, frente à sua falta de transparência, não se sabe em que medida estas se configuram como hot spots e se as escolhas dos locais foram baseadas em critérios técnicos ou por influência do setor privado.

Em segundo lugar, o Segurança Presente introduz o patrulhamento ostensivo e a pé. Os policiais e agentes da operação são facilmente identificados por coletes e transitam continuamente nas ruas selecionadas, aumentando a sensação de segurança e afirmando a ocupação do território. Cabe ainda compreender como possíveis efeitos de transbordamento do crime se concretizariam na realidade da cidade do Rio de Janeiro, e se poderiam ser amplificados em face da pré determinação das rotas do patrulhamento, que poderiam ser antecipadas pelos criminosos.

O programa introduz ainda outras estratégias de intervenção em hot spots com ênfase na transformação do espaço público, e aumento da legitimidade e confiança da população nas forças de segurança, condizentes com a literatura. A presença dos assistentes sociais na base das operações, ao auxiliar moradores de rua e usuários de drogas, possui potencial de reduzir oportunidades de se cometer crimes nestas áreas. Em relação à legitimidade e confiança, a “abordagem cidadã”, que resguarda a população de possíveis abusos, e o canal de comunicação direta com os agentes de cada operação podem ser formas de fortalecer a relação do cidadão com o policial.

Nota-se que o Segurança Presente, apresenta uma série de características que definem seu potencial como política de intervenção em hot spot. Contudo, para maximizar seus resultados, frente a restrição de insumos financeiros e físicos, uma condição central deve ser atendida: o programa tem que ser focalizado aonde o crime se concentra.

Não obstante, como discutido anteriormente, não há clareza se as ruas escolhidas pelo programa são as mais violentas dentro do bairro. Tal concentração tampouco seria suficiente, sendo necessário que as áreas beneficiadas pelo programa concentrem o crime na cidade como um todo. Dessa forma, atuar apenas no hot spots do bairro, invés de atuar sobre os hot spots da cidade – ou, no caso mais grave, focalizar o programa em micro localidades que sequer concentram criminalidade – torna o combate ao crime ineficiente e pode servir como agravante da desigualdade de segurança entre os bairros do Rio de Janeiro.

Conclusão

A expansão desenfreada da operação, promovida pelo atual Governo do Estado, pode torná-la ineficiente exatamente por restrições financeiras e de pessoal, assim como por uma possível má focalização. Além disso, questiona-se até que ponto um programa de patrulhamento de larga escala – como o Segurança Presente vem se concretizando – deveria estar sob a responsabilidade de uma secretaria do Governo e não incorporado ao planejamento e atividade da PMERJ.

Conclui-se que o Segurança Presente – mesmo que acidentalmente, devido à falta de planejamento – possui muitas características semelhantes ao policiamento por hot spots, e, portanto, caso focalizado corretamente, se apresentaria como uma política de segurança com potencial de reduzir a criminalidade na cidade. No próximo artigo desta série, será analisada a focalização do programa nas suas duas primeiras ondas. Para isto, serão comparados os índices de criminalidade entre os bairros da cidade, de forma a entender se a implementação foi, ao menos, justificada, discutindo a influência do financiamento privado e outras questões relevantes.



Bernardo Duque é um dos idealizadores da Iniciativa RioMais. Formando em Economia pela PUC-Rio com intercâmbio acadêmico na Universidade de Leeds. Tem experiência profissional em consultoria estratégica de gestão pública e em consultoria econômica com foco em infraestrutura e políticas públicas. Possui também experiência como assistente de pesquisa na área de segurança pública.


Manuel Faria é um dos membros da Iniciativa RioMais. Formando em Economia pela PUC-Rio e certificado em Economia Comportamental pela Universidade de Warwick. Possui experiência profissional no Setor Elétrico e em consultoria econômica nas áreas de infraestrutura e politicas públicas.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Imprensa/Governo do Estado do Rio de Janeiro

Notas de Rodapé
[1] Por um breve período, a responsabilidade do programa foi transferida para Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), retornando depois à SEGOV.
[2] Ele ainda tenta definir uma banda para as concentrações de 25% e 50% do crime, usando uma amostra de 8 cidades com características diferentes (como renda, população, número de anos observados, entre outras), dentre elas apenas uma não se localizava nos EUA (Tel Aviv).
[3] Ver Braga et al. (2012)
[4] Rio de Janeiro, Duque de Caxias, São Gonçalo, Nova Iguaçu, Niterói, São João do Meriti e Belford Roxo.
[5] Com exceção de São João do Meriti, que apresentou níveis de concentração também altos, porém menores.

Referências Bibliográficas
Becker, G.S., 1968. Crime and punishment: An economic approach. In The economic dimensions of crime (pp. 13-68). Palgrave Macmillan, London.

Braga, A., Papachristos, A. and Hureau, D., 2012. Hot spots policing effects on crime. Campbell Systematic Reviews, 8(1), pp.1-96.

Chainey, S.P. and Monteiro, J., 2019. The dispersion of crime concentration during a period of crime increase. Security Journal, 32(3), pp.324-341.

Weisburd, D. and Telep, C.W., 2014. Hot spots policing: What we know and what we need to know. Journal of Contemporary Criminal Justice, 30(2), pp.200-220.

Weisburd, D., 2015. The law of crime concentration and the criminology of place. Criminology, 53(2), pp.133-157.