Mobilidade urbana e acesso a oportunidades: Como a rede de transportes públicos impacta a vida dos cariocas e quais são os meios para aprimorá-la?

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*Por Mariana Moura e Renata Canini

O conceito de mobilidade urbana se refere às condições de movimentação de pessoas e bens no espaço urbano. A definição abrange veículos, vias e toda a infraestrutura necessária, sendo sobretudo considerada como a interação entre os deslocamentos e a cidade (Ministério das Cidades, 2005). Complementar, mas diferente do conceito de mobilidade, acessibilidade urbana é o grau de facilidade que os habitantes têm para alcançar determinados lugares e oportunidades, dadas suas características pessoais, a organização espacial das cidades e o arranjo do sistema de transportes. Uma cidade inclusiva [1] une esses dois fatores ao  promover a mobilidade urbana  se atentando às características de distribuição espacial e socioeconômica da população em todas as etapas do processo de planejamento [2].

Quando analisamos ambos os conceitos sob a ótica da cidade do Rio de Janeiro, a segunda cidade mais populosa do país e quarta do continente, precisamos entender primeiramente que a demografia e a estrutura habitacional se delinearam de forma a desenvolver uma série de outros municípios e cidades adjacentes ao Rio, resultando em uma quantidade significativa de pessoas que moram em outras cidades mas que trabalham na capital – em 2010, 74% dos fluminenses residiam nas cidades da região metropolitana do Rio (RMRJ), mas cerca de 55% deles trabalhavam especificamente na cidade [3]. Nesse contexto, é preciso discutir a existência de uma malha urbana de transportes eficiente e adaptada às necessidades das pessoas que se deslocam todos os dias da RMRJ para a cidade por motivos de trabalho ou lazer. Apesar da cobertura de transportes no Rio apresentar um dos melhores resultados entre as principais metrópoles do Brasil [4], tal feito não se traduz em menor tempo de deslocamento diário da população e nem significa que boa parte dela tem fácil acesso às estações de trem, metrô, BRT, VLT e barcas. A capital carioca obteve o pior desempenho no que tange o tempo médio de deslocamento casa-trabalho, em comparação a outras 74 cidades de diversos países, estimado em cerca de 95 minutos (Julliard, 2018). Dados do Instituto de Desenvolvimento e Políticas de Transporte (ITDP) mostram que 1 em cada 4 pessoas leva mais de 1 hora para chegar até o trabalho na  RMRJ. Além disso, cerca de 81% da população reside em áreas distantes das estações de transportes de média e alta capacidade. Tratando-se especificamente de mulheres negras e responsáveis pelo domicílio, a situação é ainda pior: cerca de 84% delas não tem fácil acesso a esses meios de  transportes [5]. Esses dados alertam para um panorama preocupante do desenho de políticas de mobilidade urbana: a concentração de transportes públicos em determinadas áreas tende a promover a segregação espacial de grupos mais vulneráveis socioeconomicamente, gerando um “efeito cascata” que reforça as desigualdades de gênero, racial e econômica.

No que se refere a incompatibilidade espacial (spatial mismatch) [6] há uma série de evidências definindo determinados mecanismos que explicam como a dificuldade de acesso aos empregos pode afetar negativamente os resultados no mercado de trabalho. Brueckner e Zenou (2003) argumentam que os trabalhadores podem recusar empregos que envolvam deslocamentos muito longos, dado que o deslocamento para o trabalho seria muito caro em vista do salário proposto, resultando em uma restrição do horizonte de busca espacial por emprego às proximidades de sua vizinhança (Gautier e Zenou, 2010). Aplicado ao contexto do Rio de Janeiro, é de se esperar que uma parcela significativa de trabalhadores que moram nos subúrbios cariocas ou na Baixada Fluminense restrinjam sua busca por emprego perto de casa, enquanto a maior parte das vagas de emprego estão localizadas nas áreas centrais da cidade, gerando uma incompatibilidade entre oferta e demanda. Dessa forma, o aumento da oferta de mão de obra em locais de baixa incidência de empregos leva a uma alta na taxas de desemprego e consequentemente contribui para elevar a  informalidade entre os trabalhadores.

Além disso, dado que longos deslocamentos acabam impactando negativamente a produtividade dos trabalhadores, é de se esperar que os empregadores possam estar menos dispostos a contratar pessoas que moram longe do trabalho. Por conta de um sistema de transporte ineficiente, os trabalhadores que residem em áreas mais distantes estão sujeitos a menor produtividade por conta dos atrasos e danos ao bem-estar causados pelos longos deslocamentos diários, contribuindo assim, para que as firmas prefiram contratar trabalhadores que morem mais perto do trabalho em detrimento dos outros, buscando reduzir possíveis danos econômicos (Zenou and Boccard, 2000). Como é menos factível propor uma mudança da massa de trabalhadores segregados para locais onde há maior concentração de postos de trabalho – por meio de uma política de adensamento urbano [7], por exemplo – uma alternativa mais viável seria a reforma na política de transportes. O ponto central, para além dos investimentos necessários nessa área, seria a criação de estratégias objetivando que transportes de média e alta capacidade (metrô, barcas, trens, etc.) cheguem até os que mais precisam desse serviço.

Recentemente, a Região Metropolitana do Rio recebeu uma significativa expansão da rede de transportes, motivada, sobretudo, pela Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016,  que contaram com um investimento de cerca de 4,5 bilhões de dólares, destinados majoritariamente à expansão da linha 4 do Metrô Rio, à construção dos três corredores do BRT (Bus Rapid Transit), além da criação do VLT Carioca (Veículo Leve sobre Trilhos). Campos (2018) mostrou os efeitos positivos que essas obras de expansão de infraestrutura geraram em diversos indicadores econômicos e de mobilidade: (1) elevação na quantidade de comércios e pequenas empresas nos entornos das estações, (2) geração de empregos e (3) uma redução significativa no tempo médio de deslocamento diário da população. 

Entretanto, apesar dos avanços, ainda há uma série de desafios latentes a serem enfrentados. É imperativo apontar que o planejamento da mobilidade urbana no município não foi realizado em consonância com critérios específicos relativos à demanda por transporte dos trabalhadores, mas sim de acordo com interesses de setores da construção civil ligados aos grandes eventos esportivos e especulação imobiliária nas áreas favorecidas. Como resultado, há uma série de lacunas de acessibilidade que essas mega obras não foram capazes de solucionar, e dadas as limitações orçamentárias do município, novos empreendimentos na área de transportes e até mesmo a finalização das obras em andamento – como é o caso do projeto do  BRT Transbrasil – poderão ser inviabilizados nos próximos anos. 

O BRT Transbrasil, que surgiu como uma das obras do pacote de expansão de infraestrutura dos jogos olímpicos, foi licitado em 2014 e anunciado com o objetivo de construir  um corredor de ônibus interligando as Zonas Oeste e Norte ao centro do Rio, cobrindo boa parte dos 58,5 quilômetros de extensão e dos 26 bairros que estão no entorno da maior e mais importante via expressa da cidade, a Avenida Brasil. Com a estimativa de atender cerca de 900 mil passageiros por dia, capacidade semelhante ao do metrô, seria o corredor de ônibus com o maior  fluxo de passageiros da cidade, visando suprir não só as demandas de deslocamento dos moradores do município, como também da população da Baixada Fluminense, que teria acesso ao transporte em estações localizadas próximas às rodovias e avenidas que cortam os municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo, etc. 

Porém, as obras que estavam previstas para serem finalizadas em 2016, estão em andamento até os dias atuais, acumulando um prejuízo socioeconômico de cerca de R$730 milhões [8], segundo estimativa do Tribunal de Contas do Município (TCM). Pereira (2019) mostrou que a construção completa do BRT Transbrasil poderia beneficiar cerca de 3,6 milhões de pessoas (cerca de 58,5% da população carioca) com um aumento médio de 11,3% no número de empregos acessíveis em até 60 minutos de viagem. 

Nesse contexto, é imprescindível pensar em alternativas para que os vultosos investimentos já realizados na expansão da rede de transportes tenham continuidade e possam de fato aumentar o acesso a postos de trabalho, sobretudo, da população que se encontra nas áreas mais distantes do centro. Se no início das obras os investimentos em transportes no município foram financiados por repasses federais, atualmente, por conta da crise fiscal da União, os repasses oriundos de transferências voluntárias podem ficar comprometidos [9].  Logo, os gestores municipais e estaduais têm como desafio definir caminhos para que a estrutura de transportes do Rio não fique estagnada; considerar a inclusão de entes privados, órgãos multilaterais e a criação e/ou manutenção de fundos de financiamento no desenvolvimento de projetos de mobilidade urbana se tornam escolhas necessárias.

Um exemplo de sucesso é o caso de São Paulo, que promoveu melhoras significativas em sua malha de transportes urbanos a partir de duas parcerias: (i) com a ViaQuatro, para a construção da Linha 4 do transporte férreo, se tornando a mais moderna e mais eficiente das linhas de metrô (uma observação durante quatro meses de 2018 observou a discrepância de apenas duas falhas na Linha 4, contra 29 na Linha 1 e 16 na Linha 3, ambas administradas exclusivamente pelo Governo Estadual) e (ii) a construção de uma via estratégica de BRT (o corredor Aricanduva) com o Banco Mundial, conectando partes críticas do Município que antes se encontravam isoladas. 

O corredor Aricanduva de BRT, além de servir alguns dos bairros com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) da cidade, atinge 1,2 milhões de pessoas que moram na área direta de influência da linha, e conta com 300 mil usuários por dia. Estudos mostraram que a redução no tempo gasto entre casa e trabalho pode proporcionar aos usuários acesso a 190 mil postos de trabalho formais [10]. Além do BRT em São Paulo, o Banco Mundial realizou parcerias com o Metrô do Rio de Janeiro na implementação de vagões femininos, na construção do corredor de BRT em Belo Horizonte, e na promoção de melhorias na acessibilidade e qualidade de rodovias na Bahia [11].  

Paralelamente à política de expansão de transportes públicos, precisamos nos atentar em promover o estímulo ao uso do transporte público coletivo,  além dos modos ativos de transporte, e desestimular o uso de veículos individuais. No Rio de Janeiro, 35% da área construída em edificações de uso residencial é destinada para áreas de garagens – se considerados todos os tipos de edificações, esse percentual chega a 43%. A área construída de vagas para estacionamento entre 2006 e 2015 correspondeu à mesma área conjunta dos bairros Leblon, Ipanema, Lagoa e Copacabana. Esse dado significa, proporcionalmente, que para cada apartamento construído, foi construído outro apartamento de igual tamanho, somente para abrigar automóveis (ITDP, 2017). Tal característica da cidade é fruto da opção, historicamente adotada em quase todo o país, de priorizar os carros em detrimento do transporte público na formulação de políticas de mobilidade urbana. Contudo, há uma série de medidas a serem adotadas para reverter essa situação e promover uma melhoria no fluxo de pessoas e veículos nas cidades, e que ao mesmo tempo forneceriam alívio fiscal para custear novas obras de infraestrutura. Dois exemplos são a cobrança do “pedágio urbano” [12] e a taxação de estacionamentos nas áreas centrais da cidade.

No âmbito federal, há também a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide),  arrecadação vinculada a investimentos em mobilidade urbana. Nos últimos anos o imposto, que é uma das principais fontes para investimento na infraestrutura de transporte no país, praticamente deixou de arrecadar recursos com a política de redução e supressão das alíquotas incidentes sobre os combustíveis impetradas pelo governo federal. Os usuários de automóveis já chegaram a pagar R$ 0,50 por litro de gasolina de Cide e, até o início de 2015, esse valor foi reduzido a zero – com isso, a arrecadação com combustíveis automotivos, que já foi superior a R$ 10 bilhões por ano, desde 2012 está zerada. Pela legislação vigente, 29% da arrecadação é destinada aos estados e, desta parte, 25% aos municípios. O governo federal, no início de 2015, anunciou a volta da cobrança da Cide, mas com o objetivo de aumentar o superávit primário,  não a formação de fundos para investimentos em transporte. 

Entretanto, é preciso reforçar que medidas relacionadas a taxação de carros nas áreas centrais da cidade, per se, não se configuram como a salvação para os problemas de trânsito; é necessário pensar nessa alternativa como complementar a expansão do transporte público. Por isso, é imprescindível que o ambiente político-institucional do Rio garanta que os recursos oriundos das taxas de tráfego sejam usados estritamente na ampliação de transportes, tendo como objetivo atender a maior demanda oriunda do desestímulo ao uso do transporte individual, além do preenchimento das lacunas de acessibilidade deixadas pelas mega obras olímpicas para que de fato a política tenha efeitos positivos e não gere ineficiência do ponto de vista econômico.

No curto prazo, é preciso priorizar a finalização dos “elefantes brancos”, as obras públicas iniciadas no  âmbito dos eventos esportivos e dentro de um contexto de maior flexibilidade fiscal. É inadmissível que a segunda maior cidade do país tenha uma infraestrutura de transportes não somente atrasada e precária, mas incompleta, incorrendo em custos crescentes para a população. No médio prazo, alterações na estrutura tributária que estimulem o uso de transporte público e modos ativos deveriam ser a meta: aumentar a taxação de estacionamentos nas áreas centrais e turísticas e instalar pedágios urbanos em áreas de grande movimento são dois exemplos já aplicados em outras grandes metrópoles. 

Por meio dessa análise, fica claro que o problema relacionado a infraestrutura de transportes no Rio vai muito além de questões relacionadas à falta de investimentos. Como visto anteriormente, mesmo em um cenário de expansão bilionária de mega obras, um percentual considerável dos cariocas ainda se encontram excluídos espacialmente. Nesse sentido, é preciso que projetos futuros de expansão de transportes sejam construídos levando em consideração a correspondência entre as distribuições espaciais de transportes de média e alta capacidade e as diversas parcelas da população. Além disso, as propostas estabelecidas devem ser factíveis do ponto de vista do financiamento da expansão de infraestrutura, a fim de que obras paradas por falta de recursos não se tornem algo constante na cidade “cartão-postal” do país. Por fim, alterações na estrutura tributária formuladas conjuntamente a políticas de integração dos transportes de média capacidade a outras formas de locomoção são essenciais para que haja, de fato, acesso pleno a oportunidades e serviços para todas e todos, independemente dos seus endereços.


Mariana Moreira é economista e mestranda em Economia Aplicada pela UFJF. Tem interesse na área de avaliação de impacto de política pública, especialmente a tópicos ligados à mobilidade urbana, mercado de trabalho e gênero.

Renata Canini é formada em Economia pela PUC-Rio, com intercâmbio acadêmico na Sciences Po. Atualmente trabalha como Analista Jr em empresa de consultoria na área de infraestrutura. Interessada nas áreas de políticas públicas, criminalidade e redução de desigualdades.


* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.

** Foto de divulgação: Paul Casals

Notas de Rodapé

[1] Segundo a Nova Agenda Urbana da ONU (2016), disponível em: <https://unhabitat.org/about-us/new-urban-agenda>

[2] São elas: conceituação, desenho, financiamento, implementação, avaliação e revisão (também segundo a Nova Agenda Urbana)

[3] De acordo com dados do Censo de 2010

[4] Segundo dados da plataforma Mobilidados, a Região Metropolitana do Rio apresenta os melhores resultados do Brasil, entre as metrópoles, no que tange a proximidade da população a estações de média e alta capacidade. Para mais informações acesse: <https://plataforma.mobilidados.org.br/metropolitan-areas>

[5] Para mais informações acerca do relatório do ITDP sobre as condições de acesso ao transporte público no Rio de Janeiro, acesse: <https://itdpbrasil.org/wp-content/uploads/2020/10/ITDP-Fatos-e-Propostas-para-a-mobilidade-no-Rio-de-Janeiro.pdf>

[6] Kain (1968) encontrou evidências acerca dos efeitos adversos no mercado de trabalho de pessoas negras nos EUA que provinham da desconexão espacial entre os guetos do centro da cidade (locais onde pessoas negras no geral residiam) e os subúrbios (área onde estava concentrada a maior parte dos empregos). Este argumento, que apareceu na literatura como Spatial Mismatch Hypothesis deu origem a um campo das ciências sociais aplicadas que busca mensurar como a segregação espacial de determinados grupos corrobora para a manutenção de altas taxas de desemprego entre eles

[7] Adensamento urbano se configura como o fenômeno de concentração populacional ou concentração de edificações em determinadas áreas das cidades

[8]  Dentre os inúmeros impactos gerados pelo perdurado tempo em que a obra se mantém incompleta, os auditores calcularam as consequências da redução da via expressa em razão dos canteiros ali instalados e dos blocos de concreto que limitam a área, causando congestionamentos e acidentes diários e sobrecarregando ruas circunvizinhas, que não foram projetadas para o fluxo de automóveis que passaram a receber. A partir disso, é possível ter uma estimativa do prejuízo socioeconômico do atraso nas obras

[9] Transferência Voluntária (TV) – compreende a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira. Está sujeita a uma série de restrições, como por exemplo, a Lei Orçamentária Anual (LOA). Em um contexto de crise fiscal, espera-se que contingenciamentos relacionados a essas transferências não constitucionais aconteçam

[10] De acordo com as informações oficiais do projeto, disponíveis em: <https://documents.worldbank.org/curated/en/551661565301639508/Concept-Project-Information-Document-PID-Sao-Paulo-Aricanduva-BRT-Corridor-P169140.docx>

[11]  Para mais exemplos de projetos desenvolvidos pelo Banco Mundial no Brasil, ver: <https://projects.worldbank.org/en/projects-operations/projects-list?countrycode_exact=BR>

[12] Pedágio Urbano é um tipo de tarifa cobrada em determinados lugares da cidade e horários de pico a fim de desestimular o uso de carro em áreas propensas ao congestionamento. Cidades como Londres, Cingapura, Estocolmo e Nova Iorque já aderiram a esse tipo de taxa e obtiveram resultados positivos no que tange a redução do engarrafamento e no estímulo ao uso de transporte coletivo por parte da população