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A Baia de Guanabara em perspectiva: alavanca do desenvolvimento metropolitano

*Por Michel Misse Filho

Enquanto perdura o isolamento social, esporadicamente aparecem vídeos na internet exibindo as águas transparentes de uma baía acostumada à poluição. Apesar da atual diminuição do tráfego de barcos ter sua importância na redução de poluição sonora, especialistas já afirmaram que não se trata, na realidade, de uma efetiva limpeza gerada pela quarentena — os reais fatores são os efeitos do outono [1], o período de seca, as alterações na maré [2] e, no caso de Botafogo, até uma barreira de lixo no centro da baía que a corrente marítima não pode ultrapassar [3]. De qualquer forma, a esperança gerada pelos vídeos deve servir, ao menos, para trazer o tema de volta à tona, vislumbrando uma baía possível, longe do lugar-comum que a coloca como ambiente morto e sua despoluição, portanto, como inexequível.

Sabemos que discutir questões socioambientais no âmbito fluminense é, inevitavelmente, abordar a poluição da Baía de Guanabara. Porta de entrada física e simbólica do Rio para o mundo, ambiente natural e histórico constitutivo da própria gênese da cidade, tornou-se comum, já há anos na opinião pública, a associação quase que intrínseca entre baía e degradação ambiental. O imaginário foi enraizado em décadas de maus-tratos e promessas não cumpridas, e parece também confinar a sonhada despoluição ao rol das impossibilidades.

Já não é novidade apontar os resultados abaixo do esperado do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), assinado há 26 anos. Com gastos acima de U$ 1 bilhão, as estações de tratamento de esgoto seguem operando muito aquém da capacidade total, sem a construção das devidas redes coletoras. A maior parte dos dejetos de milhões de habitantes sequer chega às estações, e transforma-se, assim, no principal passivo ambiental da baía: estima-se que ela recebe, por segundo, cerca de 18 mil litros de esgoto sem tratamento, fora as dezenas de toneladas de resíduos sólidos, chorume e poluição industrial.

UMA TRAJETÓRIA DA POLUIÇÃO

Voltemos algumas décadas na história carioca e compreendamos, contudo, a poluição enquanto processo. Se a baía vem sendo acometida ambientalmente desde o início da colonização — desmatamento e pesca de baleias, por exemplo —, foi em meados do século XX que se começou a sentir, no meio científico, o agravamento dos efeitos da poluição. Pesquisas realizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz na Ilha do Pinheiro (hoje aterrada junto à parte do Complexo da Maré) identificavam, ainda em 1957, a repentina transformação ambiental da região nos vinte anos anteriores ⁴. O aumento no fluxo de esgotos domésticos e industriais, aliado aos sucessivos aterros em Manguinhos e na Ilha do Fundão fizeram desaparecer, já naquela época, estrelas do mar, ostras, mariscos, guaiamuns, espécies de camarões e diversos peixes. Constituiu-se assim, na extinta Enseada de Inhaúma, o primeiro polo de elevada poluição da baía.

É também de 1957 a primeira matéria do Jornal O Globo a utilizar o termo “poluição” em alusão às águas da Guanabara, denunciando o desaparecimento de peixes. A inserção desta pauta no noticiário responde, certamente, ao maior interesse da sociedade por questões ambientais naquele momento, mas também manifesta a própria intensificação da poluição hídrica, à medida que indústrias poluidoras — como a Refinaria Duque de Caxias (1961), Bayern do Brasil (1958) e Refinaria de Petróleo de Manguinhos (1954) — chegavam ao Rio e o processo de urbanização se intensificava.

A população carioca crescia vertiginosamente, e segundo Enaldo Cravo Peixoto, diretor do Departamento de Esgotos Sanitários da época, a relação entre o tamanho da rede de esgotos e a população que era, ao final do século XIX, de 1,10m por pessoa, chegava em 1959 com apenas 0,27m [5]. Com o déficit sanitário e o intenso crescimento populacional, as consequentes denúncias ambientais percorrem as décadas seguintes, como mostra o gráfico da relação entre matérias de poluição na baía por década e o aumento populacional da cidade.

GRÁFICO 1 – Matérias de poluição x Aumento da população carioca

Fonte: Acervo Digital do Jornal O Globo; e IBGE, Censo Demográfico 1920, 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 e 2000.  

Pesquisando a fundo, é interessante notar que o momento de aclive das notícias (especificamente o verão de 1970) se deu em função de uma controvérsia entre mídia e Poder Público acerca de um surto de hepatite: “Médicos atestam hepatite em praias poluídas”[6], afirmava o jornal, enquanto a antiga Superintendência de Urbanização e Saneamento do Estado da Guanabara (SURSAN) negava prontamente. O fato é que a pauta da poluição da baía ganhou outra dimensão justamente quando a questão da flora e fauna (denúncias sobre desaparecimento de peixes, por exemplo) deu lugar à saúde pública, nova protagonista do debate.

O problema chegava, pela primeira vez de forma contundente, à maior parte da população. Hoje, em pleno século XXI, a situação de municípios periféricos permanece em níveis pré-industriais, com o crescimento populacional da região metropolitana, cuja maior parte — mais de 8 milhões de pessoas — localiza-se na Região Hidrográfica da Baía de Guanabara (RHBG). Com exceção de Niterói, todas as cidades que compõem a bacia drenante da baía têm defasados sistemas de esgotamento sanitário, principal desafio do Programa de Saneamento dos Municípios no Entorno da Baía de Guanabara (PSAM), assinado para os Jogos Olímpicos de 2016. Sucessor do velho PDBG, conta com outro financiamento bilionário, obras inacabadas e verbas retidas.

As cidades de Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti figuram entre os dez piores índices de tratamento de esgoto do país, segundo o ranking do instituto Trata Brasil1, mas não são as únicas. Há também municípios com dados discrepantes em relação às pesquisas de anos anteriores, e a pouca transparência das informações coexiste com a péssima qualidade dos 143[7] rios e córregos que desaguam na baía, carregando consigo os esgotos de 16 municípios.

GRÁFICO 2 – Tratamento de esgoto por município da RHGB (2018)

Fonte: SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Ano 2018, disponível em: http://www.snis.gov.br/diagnostico-anual-agua-e-esgotos/diagnostico-dos-servicos-de-agua-e-esgotos-2018

FIGURA 1 – Mapa de qualidade da água da Baía de Guanabara

Fonte: dados do Boletim de Qualidade da Água do Instituto Estadual de Ambiente (INEA). Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/apps/MapSeries/index.html?appid=3eca938e673f4f81a77f9849e76df7fb
BALNEABILIDADES E DESIGUALDADES

Os péssimos indicadores ambientais são conhecidos da sociedade, não sendo preciso acompanhar rotineiramente os boletins de balneabilidade do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), com mais de 30 praias no interior da baía, para saber que a maioria delas está quase sempre imprópria para banho. No entanto, após décadas de intenso noticiário de denúncias ambientais, um curioso fenômeno emerge para o observador, evidenciando um recorte de classe: a população fluminense, no direito de ir à uma praia balneável, partilha de uma percepção estigmatizada das praias da baía, obscurecendo belezas e ambientes que ainda teimam em resistir.

Alguns exemplos: praias como a Moreninha e José Bonifácio, na Ilha de Paquetá (ajudadas geograficamente pela corrente central que renova as águas da baía); Icaraí, Charitas e Adão, em Niterói; e mesmo a praia da Bica, na Ilha do Governador, com todos os seus problemas, ostentam proporcionalmente índices de balneabilidade semelhantes a praias oceânicas de bairros abastados como São Conrado, Pepê (Barra da Tijuca) e, eventualmente, Leblon. A tabela abaixo compara o percentual de boletins de balneabilidade (a proporção de dias próprios para banho sob o total de amostras) das referidas praias, utilizando os dados dos testes realizados pelo INEA.

TABELA 1 – Percentual de boletins próprios para banho em praias oceânicas e da baía

Praias (localização)201920182017201620152014
Barra da Tijuca (Pepê)33%36%46%65%32%51%
São Conrado (nº 220)57%35%29%17%5%19%
Leblon (Afrânio de Melo Franco)44%60%88%61%57%49%
Bica (Henrique Lacombe)*61%35%67%32%0,1%0%
Moreninha66%70%87%75%46%76%
José Bonifácio52%66%85%58%50%61%
Icaraí (Otávio Carneiro)69%68%77%64%75%85%
Charitas (Santa Cândida)52%65%75%43%52%60%
Adão90%89%93%87%95%74%
* Total de boletins emitidos significativamente menor que o de outras praias. Em 2019, por exemplo, foram realizados 18 testes, e a praia da Bica esteve própria em 11.

Exceções da regra devidamente expostas, as informações de balneabilidade comparando baía e praias oceânicas são contrastantes: a Guanabara tem 15 praias que estiveram impróprias em todos os boletins de 2019; já nas praias oceânicas, 16 (contando com a Praia Vermelha) estiveram próprias em mais de 90% dos boletins do ano. Embora não seja o melhor exemplo sanitário, o lançamento (sem tratamento) dos dejetos da Zona Sul após as Ilhas Cagarras pelo emissário submarino de Ipanema garante, ao menos, a boa balneabilidade de parte das praias oceânicas, ajudadas pela ininterrupta troca de água do mar aberto. As praias do recôncavo da baía, sem a mesma sorte, recebem maior carga orgânica e o tempo médio de renovação de 50% das águas da baía é de apenas 12 dias.

O debate sobre balneabilidade é um primeiro ponto crucial, reflexo das variadas condições socioambientais dentro de uma mesma região metropolitana. É mais necessário, ainda, impor ao debate da baía as muitas desigualdades vinculadas à sua poluição, desdobrando o tema para além de uma dimensão ambiental. Não se trata de menosprezar a vital importância da biodiversidade local, em que destacamos negativamente o decrescente número de golfinhos da baía — símbolos do brasão municipal, as centenas de espécimes nos anos 1980 se reduziram a menos de 30 hoje. Ao contrário, a ampliação “para além do ambiental” deve servir justamente à maior sensibilização da sociedade e à necessidade de priorização da pauta pelo Poder Público.

A primeira desigualdade a ser abordada, já introduzida no texto, é clara: as diferenças no acesso ao saneamento básico. Por mais que, no Rio, o drama do saneamento permeie a maior parte da população, é ainda assim notável a discrepância do centro/sul metropolitano para o subúrbio carioca, Baixada Fluminense e São Gonçalo, evidente no mapa abaixo.

FIGURA 2 – Mapa da rede de esgotamento geral do entorno da baía (em azul)

Fonte: Estudo Regional de Saneamento da Baixada Fluminense – ERSB 2013. Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/

O mapa metropolitano de saneamento fluminense está espelhado, por sua vez, em indicadores sociais e econômicos. A usual análise que trata de uma metrópole dividida entre os bairros ao sul (Zona Sul, Barra da Tijuca e parte de Niterói) e as periferias, também poderia ser interpretada como a cidade “oceânica” e a cidade “da baía”: quanto mais próximo ao fundo da baía, piores são os indicadores socioeconômicos, como mostra, abaixo, o mapa do Índice de Desenvolvimento Social da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Aludimos, também, à importância balneária na formação dos bairros de elite, quase todos constituídos próximos às boas praias de se tomar banho. As exceções localizadas no interior da baía (Botafogo, Flamengo, parte da Ilha do Governador e Icaraí) são bairros ocupados justamente num momento anterior à poluição generalizada.

FIGURA 3 – Mapa do Índice de Desenvolvimento Social (IDS) da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Fonte: Estudo Regional de Saneamento da Baixada Fluminense – ERSB 2013. Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/

Seguindo no argumento das assimetrias, se colocarmos em evidência a divisão racial da região, teremos um mapa semelhante aos dois últimos, com a maior concentração de pessoas negras nos bairros não oceânicos. O caso da poluição na baía não é diferente da já histórica relação brasileira entre raça, indicadores socioeconômicos e acesso ao saneamento, e corrobora, em abordagens socioeconômicas e étnicas, a desigualdade de riscos ambientais socialmente induzidos. Parece mais um caso de racismo ambiental quando verificamos que, ao longo do recôncavo da baía, as populações com maior concentração de negros, além de desprovidas de redes mínimas de saneamento básico, com consequente contaminação de recursos hídricos, ficam localizadas mais próximas às zonas industriais da metrópole ou mesmo de grandes “lixões” ilegais.

FIGURA 4 – Mapa racial do entorno da Baía de Guanabara

Fonte: Estudo Regional de Saneamento da Baixada Fluminense – ERSB 2013. Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/
A DESPOLUIÇÃO COMO MOTOR DE DESENVOLVIMENTO

A pertinência de abordar esses pontos é ainda maior quando levamos em conta a importância da praia não apenas como símbolo de uma metrópole turisticamente balneária, mas enquanto lugar de pertencimento de diferentes populações. Ter um olhar abrangente para a baía passa, fundamentalmente, pela percepção dos vínculos existentes em toda a região, isto é, compreendendo a extensão dos impactos sob o ponto de vista das sociabilidades urbanas e vinculações comunitárias das localidades e bairros margeados pelas águas da Guanabara. Algumas das perceptíveis consequências compreendem desde hábitos de lazer (como o usufruto das praias da baía) aos deslocamentos territoriais forçados: moradores das periferias levados a frequentar mais as praias da Zona Sul do Rio e Niterói, e o preconceito alimentado nesses “conflitos territoriais”, bem como a estigmatização dos seus territórios de origem, tidos como malcheirosos, fétidos e sanitariamente inadequados.

A restrição de uso das dezenas de praias da baía parece configurar, assim, ao menos dois fenômenos que colapsam a distinção entre “degradação da natureza” e do “social”: a perda do potencial de vinculação comunitária e de pertencimento territorial dos moradores das zonas suburbanas do Grande Rio; e o acirramento de experiências de segregação entre as periferias e as zonas sul e oeste carioca e fluminense. Os moradores das regiões mais abastadas deixam de conhecer e frequentar o que poderiam ser as belezas de dezenas de localidades no recôncavo, levando em conta ainda que a experiência de “ir à praia” constitui, mais do que simplesmente tomar um banho de mar, um impulso econômico e a construção de um inerente lugar de florescimento sociabilidades.

O real dimensionamento dos impactos metropolitanos referentes à poluição da baía é, por certo, primeiro passo fundamental para a devida abordagem do problema. Mas e as potencialidades? A força da imaginação, projetando cenários de despoluição da baía, pode nos levar, sem exageros, a uma mudança de rumo: a Baía de Guanabara, diagnosticada como um dos principais atoleiros do desenvolvimento metropolitano, não pode deixar de ser tratada como alavanca fundamental para a necessária redução de desigualdades socioeconômicas da região.

Alguns dos benefícios da expansão do saneamento na região foram valorados e expostos num relatório de 2014, produzido para o Instituto Trata Brasil ⁸. Caso o saneamento fosse universalizado, além da significativa diminuição do número de internações no SUS por doenças gastrintestinais infecciosas, estimou-se que, em duas semanas, quase 5 mil dias de afastamento do trabalho poderiam ser evitados, gerando um ganho de renda do trabalho da ordem de R$ 4,6 bilhões no ano (2012) — retornando, através de impostos, parte do valor para os governos. O estudo leva em conta, ainda, os potenciais ganhos por efeito do aumento da escolaridade, já que a falta de saneamento básico seria um fator de atraso escolar. Nesse caso, somariam mais R$ 3,29 bilhões que, agregados ao ganho pela diminuição do afastamento de trabalho, implicariam em um aumento de 9,2% na remuneração do trabalho, segundo as perspectivas daquela época.

O valor total que beneficiaria os municípios do entorno da baía, ainda segundo este relatório, ultrapassaria os R$ 30 bilhões em trinta anos, somando os ganhos imobiliários, turísticos e com redução de custos de internação — valor um pouco maior do que os R$ 27 bilhões que, à época, eram estimados para universalizar o saneamento da região. Contudo, é evidente, por si só, a complexidade de um estudo de valoração deste tipo, sobretudo um realizado já há 6 anos. Embora não deva ser levado “ao pé da letra”, serve, ao menos, ao delineamento possível de um horizonte promissor que o saneamento permite ao desenvolvimento metropolitano.

Sob o ponto de vista turístico, uma série de fatores devem ser considerados e, mais do que qualquer estudo, apenas a efetiva despoluição poderia descortinar uma série de possíveis impactos em efeito dominó. A subutilização turística da parte mais esquecida da baía (o lado ao norte da Ponte Rio – Niterói) inclui, por exemplo, localidades como as belas praias nas ilhas de Paquetá, Brocoió, Jurubaíba e Tavares; as praias da Ilha do Governador e da Ilha do Fundão; a Igreja da Penha e a Praia de Ramos; a região de Magé, antiga Guia de Pacobaíba, com a primeira estação ferroviária do país; toda região de manguezais da Área de Proteção Ambiental de Guapi-Mirim, emoldurada pelas silhuetas da região serrana, ao fundo; as isoladas e bucólicas praias da Luz e São João em Itaoca (São Gonçalo); além do ecoturismo subaquático, mergulho e observação de espécies que tentam sobreviver.

Ainda assim, levando em conta a baía como um todo, não podemos apartar seu espelho d’água dos dois maiores pontos de visitação do estado: o Corcovado (que pouco valeria sem a vista a partir da enseada de Botafogo), que recebe em torno de 1,7 milhão de visitantes ao ano, e o Pão de Açúcar, na entrada da baía, com cerca de 1,5 milhão de visitas anuais ⁹. O trabalho de olhar a baía por um viés econômico, realizado em um artigo pelo economista da UFRJ, Carlos Eduardo Young, e por Rodrigo Medeiros, geógrafo da UFRRJ, aponta outro cenário de valoração econômica. Mesmo um “exercício simples”, segundo os autores, evidencia a importância econômica em função do alto número de visitantes dos pontos turísticos da baía.

Assumindo, de forma conservadora, um gasto médio diário de R$ 300,00 por pessoa por dia de visita […], e um efeito multiplicador de 1,5, pode-se estimar que a demanda econômica gerada pela visitação relacionada à Baía de Guanabara é de pelo menos R$ 2,7 bilhões anuais. […] Por outro lado, deve-se considerar que o custo das oportunidades desperdiçadas também se situa na casa dos bilhões de reais anuais. […] Por fim, deve-se considerar outras dimensões de valores que, embora sejam mais difíceis de monetizar, são talvez ainda mais importantes. A Baía de Guanabara é uma imensa área desaproveitada de recreação e lazer para o próprio habitante do seu entorno (extensas praias de areia, pesca esportiva, esportes náuticos, etc.) ¹º

Há, ainda, os benefícios imensuráveis, que estabelecem na despoluição da baía uma proporção incapaz de ser apreendida por trabalhos tradicionais de valoração econômica: as consequências midiáticas de uma baía limpa; o efeito multiplicador da distribuição de renda gerada ao se injetar dinheiro novo em regiões pouco visitadas; os impactos das dimensões do lazer, sociabilidade, revalorização do ambiente e tradições locais, e da saúde física e mental da população.

Embora perfeitamente possível, parece tratarmos aqui de sonhos de um futuro distante. A construção de uma pressão popular imprescindível para a despoluição passa, sobretudo, pela perspectiva abrangente que o tema deve envolver. Não nos esqueçamos: a revitalização deste grande “território comum” fluminense possibilitaria não só a preservação de um ecossistema ambiental, mas um reencontro da potência do imaginário do Grande Rio consigo mesmo. Contemplar o interior da baía é olhar para dentro, para a própria história da região e, geograficamente, sempre nos remete ao outro lado de suas águas e à circularidade de seus espaços: de Icaraí ao Flamengo, de Magé a São Gonçalo, das ilhas para o continente.



Michel Misse Filho é jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integra o Observatório de Jornalismo Ambiental, ligado ao Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS)



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Cláudio Luiz Castro/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] CHAVEZ, R. Água cristalina na Praia de Botafogo é efeito do outono, diz INEA. R7, Rio de Janeiro, 18/05/2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/agua-cristalina-na-praia-de-botafogo-e-efeito-do-outono-diz-inea-19052020 Acesso em: 19/05/2020
[2] GUIMARÃES, C. Vídeo da água transparente na Praia de Botafogo: efeito da quarentena? Veja Rio, Rio de Janeiro, 19/05/2020. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/agua-transparente-praia-botafogo-video/ Acesso em 19/05/2020
[3] BREVES, L. Rio surreal: o momento caribenho da Praia de Botafogo. O Globo, Rio de Janeiro, 19/05/2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/rio-surreal-momento-caribenho-da-praia-de-botafogo-24433854 Acesso em 19/05/2020
[4] OLIVEIRA, L. Poluição das águas marítimas: estragos na fauna e flora do Rio de Janeiro. In: Memórias do Instituto Oswaldo Cruz: v.56. Rio de Janeiro, 1958
[5] NOSSA rede de esgoto é proporcionalmente menor que há um século atrás. O Globo, Rio de Janeiro, 15/09/1959. Geral: 9.
[6] CASOS confirmam: o perigo existe. O Globo, Rio de Janeiro, 08/01/1970. Geral: 13.
[7] ALENCAR, E. Baía de Guanabara: descaso e resistência. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll / Mórula, 2016.
[8] Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/datafiles/estudos/baia-guanabara/Estudo-Completo-Beneficios-do-saneamento-na-Baia-de-Guanabara.pdf Acesso em 07/05/2020
[9] Dados do Anuário Estatístico de 2014 da Secretaria de Estado de Turismo. Disponível em: http://www.turisrio.rj.gov.br/downloads/Anu%C3%A1rio%20Estat%C3%ADstico%202014.pdf Acesso em 07/05/2020
[10] YOUNG, C & MEDEIROS, R. Baía de Guanabara: um olhar econômico. 2017. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/326986425_Baia_de_Guanabara_um_olhar_economico