O Rio Invisível: Pessoas em situação de rua e o Programa Habitação Primeiro (Parte 2/2)

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*Por Ana Luiza Pessanha e Larissa Montel

Segundo o Decreto nº 7.053, de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua, este grupo é definido como:

“grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”

Com esta definição ampla, muito se é debatido sobre a quantidade de pessoas em situação de rua hoje no Brasil. Não existe um censo amplo que dê números concretos sobre essa parcela da população. As estimativas existentes apontam para mais de 100 mil pessoas nessa situação no país em 2016, enquanto levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro indica que para o município esse número correspondia a 15 mil pessoas, inferior apenas ao da cidade de São Paulo. Com o número de desempregados se mantendo acima de 11 milhões desde 2016, além de um cenário geral de precarização da vida, é perceptível o aumento daqueles que fazem da calçada um abrigo.

A população em situação de rua enfrenta uma série de desafios para além do desemprego, como a violência, negação de acesso a espaços, pertences furtados ou retirados à força por agentes públicos, saúde mental fragilizada e políticas restritivas em relação ao uso de álcool e drogas. As políticas públicas implementadas até o momento assumem em sua maioria um viés moralista e condenatório da situação de rua, não trabalhando as raízes do problema.

Os principais fatores de permanência na rua são a dependência química, uma falsa sensação de liberdade, questões de saúde mental (depressão, baixa autoestima, transtornos decorrentes do uso prolongado de álcool e outras drogas) e a falta de oportunidades de moradia e emprego. A maior parte das políticas públicas adotadas até o momento se mostram ineficazes por não levarem a globalidade e interseccionalidade desses fatores em conta. Os abrigos públicos e as casas terapêuticas trabalham com uma abordagem da abstinência para tratamento de dependência química, além das rígidas regras de convivência (horário para acordar, comer, dormir, etc). As políticas públicas de redução de danos, com implementação dos CAPS-AD e Consultórios na Rua focados em redução de danos têm tido um efeito positivo no tratamento da população em situação de rua dependente química.

O maior obstáculo se encontra nas políticas de moradia. Além de um direito humano, a casa é um elemento estabilizador, que abre espaço para que os demais fatores de ida e permanência nas ruas possa ser trabalhado. Hoje, as políticas de reinserção social para população em situação de rua adotam um modelo etapista, onde a casa seria a última conquista, o “prêmio final” após uma série de desafios vencidos. Essas políticas têm se mostrado ineficientes, porque as demais etapas trabalham em uma abordagem limitada, como apresentado acima.

Nesse contexto, surgiu o Programa Housing First (Habitação Primeiro, em português), um modelo focado em moradias individualizadas e serviços de suporte para a população em situação de rua. Seus resultados são comprovadamente eficientes nos países onde é política pública, tais como Espanha, Canadá, EUA, entre outros. Neste modelo, a moradia se torna um ponto de partida, e não o destino final. Seus elementos chave são: 1. O oferecimento de moradia em primeiro lugar e sem tempo determinado; 2. Moradias individualizadas e com o atendido fazendo parte do processo de escolha; 3. Variedade de serviços disponíveis (mas não obrigatórios) para aumentar o bem-estar individual; 4. Equipe de apoio para acompanhar a pessoa em sua reinserção; 5. Foco na autonomia do indivíduo.

O Projeto RUAS é uma ONG carioca que atua com o objetivo de demolir barreiras e gerar oportunidades para todos em situação de rua desde 2014. Seu fundador, Murillo Sabino, conheceu o Housing First em 2016, após passar um mês em imersão na ONG reStart, em Kansas City, como um resultado do prêmio YLAI (Young Leaders of the Americas Initiative). Nos últimos três anos, a organização tem investido seu tempo, equipe e recursos em aprender mais sobre o modelo e aplicá-lo no contexto brasileiro. Já foram 4 pilotos, 1 intercâmbio para a Espanha, diversas participações em eventos e muito estudo para a implementação.

O maior caso de sucesso hoje é o de Vera, que participou do Housing First – aqui adaptado para Habitação Primeiro – por meio de uma campanha de financiamento coletivo, “uma casa para Vera”. Após 2 anos, Vera permanece em sua casa, investindo em sua educação e trabalho. Nos últimos anos, o número de avaliações de impacto do programa Housing First tem aumentando de maneira relevante, principalmente nos EUA. Um dos maiores centros de pesquisa envolvidos em avaliações de políticas públicas, o JPAL, publicou recentemente uma síntese dos resultados de quarenta avaliações rigorosas de dezoito programas distintos relacionados à prevenção e redução de desabrigados na América do Norte. As principais evidências encontradas foram:

  1. Efeitos positivos de intervenções que fornecem variedade de serviços como assistência financeira, aconselhamento e apoio legal nas famílias com risco de perder suas casas, embora ainda seja necessário pesquisas mais profundas a respeito de melhor focalização.
  2. A representação legal de inquilinos que enfrentam despejo é promissora para melhorar os resultados relacionados aos tribunais e reduzir despejos, embora sejam necessárias mais pesquisas sobre quais tipos de táticas e programas legais são eficazes.
  3. Assistência financeira habitacional permanente aumenta a estabilidade da moradia para indivíduos com doença mental grave e para veteranos que enfrentaram desabrigo. Em relação a outros grupos de pessoas, as evidências ainda não limitadas e inconclusivas.
  4. Embora a recolocação habitacional rápida seja uma solução potencialmente custo-efetiva para fornecer acesso rápido à habitação, as evidências a respeito do impacto de tais políticas na estabilidade habitacional de longo prazo ainda são limitadas e inconclusivas.
  5. A assistência habitacional subsidiada a longo prazo, na forma de vouchers de moradia, ajuda as famílias de baixa renda a evitar a falta de moradia e a permanecerem estáveis.

Apesar de alguns resultados positivos apontados pelo estudo acima, pesquisas adicionais sobre a eficácia de outras estratégias para reduzir a falta de moradia ainda são necessárias, uma vez que há lacunas na literatura de avaliações de programas de prevenção ou assistência à população em situação de rua. Uma outra avaliação do Housing First está atualmente em andamento na cidade de Santa Clara, Califórnia.  Embora tenha uma das maiores rendas médias dos EUA, o município também possui a nona maior população em situação de rua do país e a maior população de pessoas que sofrem de falta de moradia que não ficam em abrigos. As barreiras enfrentadas pelos desabrigados na obtenção e manutenção de moradias têm se tornado mais difíceis, uma vez que as taxas de aluguel aumentaram em mais de 50% desde 2011.

Considerando tal cenário, está sendo implementado um programa de realojamento rápido, cujo critério de elegibilidade consiste em adultos solteiros que tenham pontuação intermediária em uma avaliação de vulnerabilidade. Após selecionados os participantes (chamado grupo de tratamento), a instituição responsável pela avaliação irá oferecer um subsídio progressivo de assistência de aluguel, a fim de facilitar a transição de cada pessoa de volta à habitação. Os participantes de recolocação rápida em geral serão alojados em 60 dias e essa assistência pode durar até dois anos. O programa custa cerca de US$ 15.000 ao ano por beneficiário, incluindo serviços de suporte e assistência de aluguel. O grupo de comparação (não tratados), por sua vez, receberão cuidados usuais, consistindo em abrigos de emergência, passes de ônibus, unidades móveis médicas e encaminhamentos para organizações comunitárias que fornecem programas de emprego, educação e bem-estar.

Os pesquisadores examinarão os dados do município quanto ao impacto do programa em quatro tipos de resultados: estabilidade da habitação, saúde, crime e benefícios públicos. Os indicadores usados ​​para medir a estabilidade da moradia incluirão a taxa de uso do serviço para pessoas em situação de rua, entrada e duração em abrigos, existência e permanência de um endereço formal e excesso de mudanças de moradia. Os indicadores de saúde incluirão qualquer hospitalização, além de consultas ambulatoriais e psiquiátricas. Os indicadores para os resultados do crime incluirão o número e o tipo de prisões e o número de dias passados ​​na prisão. Por fim, os indicadores de uso de benefícios públicos incluirão o recebimento de qualquer tipo de assistência pública e o total gasto em cada benefício.

Embora seja de extrema importância que os formuladores de políticas públicas acompanhem de perto essas avaliações de impacto mundo afora, é preciso ter cuidado com a chamada validade externa dos estudos, isto é, a capacidade que o pesquisador tem de generalizar os resultados de uma intervenção para outros contextos não necessariamente similares.

O déficit habitacional é um problema estrutural das sociedades atuais. Podemos encontrar pessoas vivendo nas ruas em praticamente todos os países do mundo. Por isso, não existem soluções simples ou caminhos únicos para resolver essa questão. Além das políticas de moradia, a existência de ações que trabalhem o cuidado do indivíduo de forma integral possui muitos benefícios. Caminhando ao lado das políticas de assistência social e saúde, projetos sociais e instituições do terceiro setor têm mostrado um impacto positivo na reinserção social da população em situação de rua.

O Projeto RUAS atua com atividades semanais de conexão da população em situação de rua e residentes dos bairros em seu entorno, por meio de rodas de conversa em praças públicas. Em suas ações, busca trabalhar em três níveis para gerar oportunidades a este público. Em uma esfera mais individual, atua no fortalecimento da autoestima e autonomia da população em situação de rua, por meio de atividades de informação e estímulo, conectando-os aos serviços existentes e promovendo espaços de escuta. Em uma esfera coletiva, proporciona um impacto nos residentes que participam como voluntários das atividades, quebrando estereótipos ligados à situação de rua, trazendo um novo olhar sobre a questão. Por fim, em um espaço mais estrutural, busca incidir na construção de políticas públicas efetivas para este público, participando de fóruns e colegiados de debate e construção política.

A interseção entre políticas paliativas e estruturais é fundamental para o desenho de uma política pública eficaz na redução do número de pessoas em situação de rua, tanto no curto como no longo prazo. Dessa forma, como próximo passo dessa série de textos, iremos analisar a evolução do orçamento da cidade do Rio dedicado a políticas para essa população e os tipos de medidas implementadas pelas administrações recentes. A partir desse diagnóstico, podemos avaliar os acertos e erros de políticas passadas e pensar novas formas de atuação, utilizando orçamento público e parcerias público-privadas. Sempre há espaço para pensarmos em políticas mais eficazes e eficientes, que considerem as diversas óticas desse problema social.



Ana Luiza Pessanha é membro da Iniciativa RioMais. Economista pela UFRJ com foco em Pobreza e Desigualdade, é criadora e coordenadora do Núcleo Executivo de Políticas Públicas do Movimento Acredito na cidade do Rio de Janeiro.


Larissa Montel é graduada em Relações Internacionais pela UNESP. Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ. Gestora Estratégica do Projeto RUAS. É também parte da coordenação do Fórum Permanente sobre população adulta em situação de rua do Rio de Janeiro.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Jon Tyson/Unsplash