Holofote direcionado do fascínio à urgência: os cinemas de rua como mudança para o Rio entre 1894-1920 e nos dias atuais

Cinema

*Por Tainá Andrade da Silva

RESUMO

Este artigo analisa a presença dos cinemas de rua no município do Rio de Janeiro em dois momentos diferentes: o da chegada do cinema à cidade e o da Zona Norte carioca de hoje. Debruça-se sobre a comparação para analisar como os espaços que antes faziam sucesso e agora estão fechados podem servir de esperança corroborando com uma distribuição cultural menos heterogênea. O objetivo é apontar a importância de todo o território para as melhorias da cidade e estabelecer possibilidades de projetos, políticas e iniciativas capazes de amparar o Rio.

semelhanças e afastamentos: uma breve introdução

A chegada do cinema à cidade do Rio de Janeiro teve influência imensa no local e nos habitantes, o que gerou mudanças no modo de vida e nas construções urbanas, atingindo arquitetura, urbanismo e moda. Pode-se, até mesmo, afirmar como a presença cinematográfica nas ruas do Rio se relacionou à criação de uma identidade carioca. Inclusive, não faz sentido separar a difusão urbana da própria cidade, da expansão cinematográfica pelo município em relação a espaço e a importância. O cinema apareceu como parte das salas de diversão e sem conter tanto valor, foi se consolidando, principalmente através da Cinelândia, e, enfim, ocupou todos os espaços, abarcando também os subúrbios. Porém isso foi na passagem do século XIX para o XX.

O que resta, hoje, dos cinemas de rua na Cidade Maravilhosa são poucas salas abertas e diversas abandonadas. [1] A comparação com o período entre 1894 e 1920 não se dá por uma repetição no modo de ir ao cinema ou na influência gerada em tantos âmbitos, podendo modificar até a geografia dos bairros. A princípio, ao pensar nos cinemas de rua no presente, foca-se muito no encerramento das atividades das salas e em um saudosismo entristecido, porém tal acontecimento ocorreu, primordialmente, nas décadas de 70 e 80, o momento é outro. É necessário entender o carioca atual, a busca que ele realiza pela cultura e a heterogeneidade da distribuição cultural. A semelhança se dá, exatamente, por conta do afastamento.

Se no início da caminhada do cinema no Rio a sétima arte ditava regras, em uma época de novidades na palma das mãos, quem manda são as pessoas. Mas quais pessoas? O debate não é sobre remontar um período que já passou. Fala-se de acesso. Quais são os cariocas que têm direito à cultura, apesar de ela ser um direito de todos? Assim, a Zona Norte do Rio entra em foco como um subúrbio, servindo de exemplo para tantos outros subúrbios participantes da cidade. Primeiro, pois a localidade ao norte do município teve o número de cinemas de rua reduzido em praticamente 100%, fato comprovado no infográfico do O Globo realizado por Matheus Carrera, o qual mostra apenas um cinema na região. [2] Entretanto, a chave de tudo está nos prédios sem uso pelas ruas.

O ideal hegemônico e consumista explica de que forma, apesar de presente por todos os ambientes da cidade desde o surgimento do cinema, a cultura é distribuída heterogeneamente e acaba por invisibilizar determinados espaços. A importância de comparar os dois momentos, sendo eles o da chegada do cinema ao Rio de Janeiro e o vivido pela cultura da Zona Norte atual, revela-se em algumas questões. Como antigos cinemas remanescentes no descaso podem ser usados para melhorar o acesso à cultura pelos moradores da Zona Norte? A reabertura, e até a abertura, desses espaços pode criar melhorias não apenas culturais, como financeiras e de segurança? Quanto a ênfase sobre determinadas regiões, as quais costumeiramente não ganham atenção, pode afetar a cidade como um todo?

“COMO NO CINEMA”, FAZIA-SE O RIO

Através da leitura de notícias, crônicas, opiniões e outros formatos de texto do início do século XX, é possível perceber a repetição da frase “como no cinema”. Desde quando o cinema apareceu no município carioca até 1907, apesar e, também, por conta do subdesenvolvimento que assolava o Rio e o Brasil, ele já repassava, através dos filmes, o novo ideal de cidade a se alcançar, o qual era heterogêneo e visava implementar uma beleza européia (SOUSA, 2013, p. 58). O cinematógrafo se estabeleceu necessário para fundamentar o que o Rio se tornaria entre 1907 e 1909 (CARVALHO, 2014, p. 92) e, enfim, consolidou-se a Bella Époque carioca, a qual, em seguida, foi substituída pela inspiração no cinema norte americano (CARVALHO, 2014, p. 251).

Ou seja, no que diz respeito à recepção e às mudanças acarretadas aos cariocas e ao Rio após a chegada do cinema: “Homens e mulheres tornavam-se, eles próprios, cinemas” (CARVALHO, 2014, p. 259). Em todo o Rio de Janeiro.

quais divisões existiam no rio criado pelo cinema?

De acordo com Maurício Abreu no livro Evolução Urbana do Rio de Janeiro:

A estrutura espacial de uma cidade capitalista não pode ser dissociada das práticas sociais e dos conflitos existentes entre as classes urbanas. Com efeito, a luta de classes também reflete-se na luta pelo domínio do espaço, marcando a forma de ocupação do solo urbano. Por outro lado, a recíproca é verdadeira: nas cidades capitalistas, a forma de organização do espaço tende a condicionar e assegurar a concentração de renda e de poder na mão de poucos, realimentando assim os conflitos de classe (ABREU, 2013, p. 10).

Assim sendo, a construção das regiões nas quais se divide a cidade do Rio de Janeiro deixa ainda mais evidente como o espaço da cidade é separado de acordo com as condições financeiras, principalmente considerando que “O Estado não tem, pois, uma participação neutra no contexto urbano […], no cenário capitalista, ele expressa o seu interesse” (ABREU, 2013, 10-11). Enfim, pode ser comum o susto ao tentar entender como a separação das zonas do Rio acabou por alavancar certos ambientes em detrimento de terceiros, pois se toma o conhecimento de que as regiões já iniciaram as fragmentações seguindo a lógica de alocar pobres de um lado e ricos de outro (ABREU, 2013, p. 45).

Enquanto o Estado fomentava a separação de classes nos diferentes espaços e, por diversas épocas, reformas eram feitas ignorando boa parte da cidade, “Havia tempos a convivência da elite com as práticas e rituais da população periférica e suburbana configurava um tipo de cultura ‘marginal’ em meio ao contexto da modernidade que se implantava no Rio de Janeiro” (ABREU, 2009, p. 38). Sendo assim, “Estas expressões populares estavam por volta de 1910 integradas a um mercado semiprofissional que incluía cantores, músicos, dançarinos e atores que obtém parte de seu sustento vivendo destas atividades” (ABREU, 2009, p. 38). Então, apesar de a cidade se formar de maneira intrinsecamente excludente, a cultura está presente no subúrbio e o cinema, entretenimento de maior fama do período, também se faz presente.

Dentre os tantos motivos que levaram e mantiveram os cinemas nos bairros das áreas periféricas, constatou-se “a participação efetiva dos grandes cinemas como catalisadores para consolidação da urbanidade carioca” (SOUSA, 2013, p. 145) — ou seja, confirma-se o cinema servindo de parâmetro para a formação do Rio como se conhece hoje.

Contudo, através dessa mesma constatação, torna-se necessário reafirmar que “Embora a participação das classes populares seja de importância vital na formação da indústria cultural é forçoso reconhecer que os segmentos da sociedade oficial subestimaram tanto quanto puderam estas manifestações vindas da periferia” (ABREU, 2009, p. 108).  Logo, o cinema não só esteve presente na Zona Norte em alguns momentos; a cultura, por diversas vezes, foi criada nos subúrbios, reapropriada e afastada dos mesmos. Quer dizer, antes de qualquer crise na qual os cinemas foram fechados em todas as partes do país, o principal problema para as classes desfavorecidas foi e continua sendo o da exclusão em diversos âmbitos, destacando-se o da cultura em vista de que o povo cria boa parte dela e perde o direito de tê-la.

O PANORAMA DA CULTURA NA ZONA NORTE DO RIO HOJE [3]

Comparativamente, apesar do fato de que “A situação do cinema não é mais a mesma, o ‘lugar’ do cinema não é mais o mesmo. Os palácios cinematográficos entram em xeque na contemporaneidade. Ainda há espaço para esses cinemas nas ruas? Esquecemos aquelas salas? Esquecemos parte delas…” (SOUSA, 2013, p. 19), o âmbito cultural não acabou. Visa-se, enfim, elucidar como mesmo enfraquecidos e distanciados, a arte e o entretenimento da região ao norte do Rio permanecem existindo e apostam na importância da espacialização.

O grande questionamento é de que, enquanto os cinemas de rua eram ofertados em quase todos os bairros, algumas vezes chegando a ter dois ou três em um bairro só — como informou Roberto Vieira de Andrade, de 62 anos, sobre Rocha Miranda em entrevista para a autora no dia 16/11/2018:

Aqui no Guaraci passavam uns filmezinhos legais, muito filme de karatê, kung fu, era o filme do momento! Bruce Lee, né? E naquele cinema lá passava só filme pornográfico, o São Francisco ali descendo a Barro Vermelho… Tu desce a Barro Vermelho toda, né? Então, quando chega lá na linha do trem, dobra a esquerda ali e tinha um cineminha furreca… E tinha um na Diamantes, ali onde é o Guanabarino, do lado do rio, ali era um cinema que a gente estava vendo um filme, sentado na boa e daqui a pouco passava cada ratão desse tamanho!

Após o desaparecimento dos cinemas de rua, não existiu uma verdadeira substituição, na qual os bairros da Zona Norte trocaram o antigo modelo e ganharam outra forma de diversão na nova vaga aberta. Então, localidades em que foram criados os shopping centers, por vezes, não atenderam toda a demanda existente, graças ao preço e à distância e, pior do que isso, muitos outros espaços passaram a não contar com uma atividade cultural certa, como é o caso da supracitada Rocha Miranda — onde de três cinemas, chegou-se a nenhum.

Para combater a falta, projetos são criados pelos próprios moradores suburbanos e articuladores locais da cultura, sendo esse um retrato presente no Rio desde o estabelecimento do cinema na cidade e que permanece existindo nas tentativas de retorno dos cinemas de rua:

Da mesma forma que o projeto de civilidade planejado pela elite dominante para a cidade conviveu com interpretações paralelas para a modernidade, a indústria do espetáculo que estava sendo importada da Europa e posteriormente dos EUA era precedida por diferentes versões artísticas nos bairros populares, cuja liderança do negro já era percebida desde os primeiros anos da República (ABREU, 2009, p. 102).

Em vista disso, assim como um cinema com mais de 1800 lugares lotava em um bairro sem estação de trem nos anos 40-80, sendo o caso do Cine Vaz Lobo, não é possível dizer que, agora, a falta de acesso é gerada por uma falta de procura. Existem cineclubes, associações sem fins lucrativos, coletivos e os mais diversos movimentos capazes de mostrar como os cidadãos da Zona Norte querem ter e fazer cultura. Porém, inúmeras vezes, projetos realizados de forma independente são complexos de manter e não chegam a todos que necessitariam deles, seja por falta de experiência em divulgação ou por falta de verba.

Entende-se que “A permanência desta sala de espetáculos, muito embora desprovida de função, repousa na sua forte carga simbólica no âmbito da localidade” (DIAS, 2014, p. 9)  e também que “a maior parte da população roga pela sua reabertura como cinema” (DIAS, 2014, p. 12). Todavia, enquanto Lúcia Dias se atém em explicar a importância do Cine Guaraci como a espacialização cultural de Rocha Miranda, o mesmo ocorre em outros tantos bairros através de diferentes cinemas de rua.

alguns cinemas de rua na zona norte carioca

o que temos na contemporaneidade é outro tipo de cinema, voltado para outro tipo de público e com um tipo de prática ritualística que pouco lembra o hábito do cinema de décadas anteriores. O cinema voltou a elitizar-se – a exemplo das salas do início do século XX, que continham camarotes, balcões e divisões por classes sociais – e se hierarquizou com a ida das salas para os shoppings centers (SOUSA, 2013, p. 54).

Assim sendo, como é possível vencer a nova elitização e hierarquização do cinema? E, melhor, por que fazê-lo?

A queda verificada no número de cinemas é ruim para a indústria no Brasil, pois estão ficando em menor número os pontos em que os filmes são exibidos ao público. Depois de chegar a 626, o menor dos últimos 10 anos, o número de cinemas subiu para 633, ainda abaixo do existente no início da década. O quadro anterior deixa clara a transformação do circuito brasileiro, com a queda do número de cinemas com menos de cinco salas e o crescimento dos complexos maiores, embora o crescimento destes não esteja compensando a queda dos primeiros. Para agravar a situação, há uma carência importante de cinemas nos bairros, com predominância das classes C/D/E, exatamente as que, nos últimos anos, têm apresentado maior crescimento em seu nível de renda. O cinema, quando transformado em hábito, é consumido perto da residência do espectador. Do contrário, é um programa eventual, privilegiando praticamente apenas o filme-evento (BRAGA, 2010, p. 84).

Um exemplo de reabertura é o Imperator, o único cinema reaberto na parceria entre o ex-prefeito Eduardo Paes e a RioFilme, na qual as datas não estipuladas para a revitalização de outras salas, de fato, nunca foram marcadas e não existiram:

Enquanto ainda aguarda pelos novos cinemas, que ainda nem têm data para serem entregues à população, o morador da Zona Norte vai poder, ainda esse ano, contar com novidades no mercado das salas exibidoras. O cinema do Imperator, no Méier, já está em fase avançada de reformas e tem inauguração marcada para setembro. [4]

Foi possível ir até o local conferir como ficou o resultado da reabertura e se, após seis anos, o público continuava aderindo ao ambiente: em uma segunda-feira chuvosa, já chegando na quarta semana de exibição do filme Bohemian Rhapsody, a sala 3 do Imperator estava praticamente lotada, só sobrando lugares na primeira fileira e na de cadeirantes. Através da tela imensa e do som potente, foi inevitável que quanto mais se assistia sobre o Queen, mais as pessoas cantassem, criando-se praticamente um novo show dentro da sala de exibição. Além disso, no mesmo dia, o Centro Cultural João Nogueira também estava realizando um evento de comemoração da Consciência Negra, no qual houve apresentação do grupo Fundo de Quintal.

Dentre tanto movimento, mesmo se tratando do último horário de exibição, foi possível conversar com Maria do Socorro, 62 anos, moradora da região do Méier desde sempre. Ela levantou a importância do espaço:

Morando perto, a gente está sempre aqui pelo Méier. Quando fechou, eu senti falta de um espaço de cultura num bairro da Zona Norte, que normalmente só é Zona Sul ou então Centro da cidade, Barra, que também é Zona Oeste… Mas eu gostei muito quando reinaugurou. Eu acho que revitalizou bastante o bairro e, na verdade, é uma oportunidade pro morador daqui e adjacências poderem ter esse momento de lazer, né? Para a gente não ter que se deslocar para outros bairros e poder frequentar aqui mesmo (Maria do Socorro, 62 anos).

E completou sobre a abertura de outros lugares como o Imperator: “Eu acho que seria muito interessante, daria oportunidade às pessoas de terem um lazer que seja mais leve financeiramente. Mas, ao mesmo tempo, acho que as autoridades não vão investir muito. Está complicado por causa da crise, então talvez essa não seja a prioridade…” (Maria do Socorro, 62 anos).

Enquanto isso, o Ponto Cine é um exemplo de cinema de rua aberto contemporaneamente. Antes da abertura do estabelecimento, como informou Adailton Medeiros ao jornal O Globo na matéria chamada Inaugurado há 10 anos, o Ponto Cine oferece cultura brasileira a Guadalupe [5], o bairro não contava com nenhum incentivo ao acesso cinematográfico desde os anos 70 — “Guadalupe era virgem de cinema, os últimos que existiam aqui foram fechados na década de 1970” [6]; agora, o lugar tem um multiplex dentro do shopping Jardim Guadalupe e, claro, o Ponto Cine.

O cinema foi aberto em 2006 e passou por alguns altos e baixos, quando fechado, gerou inúmeras respostas e cobranças, as quais serviram para mostrar o interesse das pessoas da região pelo maior acesso à cultura. Corrobora-se, também, com a ideia da existência de um afastamento cultural em determinados espaços, elucidando como ações parecidas com as realizadas em Guadalupe precisam ser repetidas e aprofundadas.

Inclusive, sobre o porquê para tamanho afastamento cultural sofrido pela Zona Norte, a qual acaba por receber somente conteúdos mercadológicos, resta a ponderação do dono do estabelecimento:

Tudo o que vem pra cá, a massa ta aqui, a massa ta no subúrbio. Você tem uma cidade que tem, aproximadamente, 6 milhões de habitantes e 4 milhões estão nessa área. Só que são 4 milhões que sustentam uma minoria! Esses 4 milhões… É o sistema escravocrata, não mudou nada não. Só a forma de bater que muda, por exemplo, o chicote hoje é o trem e o metrô. Você pegar um trem cheio, um metrô cheio… Por que você passa por isso? “Ah, porque o sistema de transporte é deficiente”, não, é muito bem planejado. A mão de obra mais barata da cidade ta aqui, você vai trabalhar no Centro, ou na Zona Sul, ou na Barra da Tijuca pra ganhar um salário baixo, quando eu falo salário baixo, a média é 1200, 1600 reais. Imagina você ganhando 1500 reais, pegar um metrô ou um trem com ar condicionado, tudo limpinho, clarinho, você vai pensar “po, por que eu ganho 1500 reais?”, você não pode pensar! Então, você tem que apanhar. Se você não pode pensar, qual é a tática? “Vamos entupir de coisas que ocupem, mas não provoquem o pensamento” (Adailton Medeiros, 57 anos, idealizador e realizador do Ponto Cine).

AS POSSIBILIDADES PARA A CULTURA DA ZONA NORTE

Se há, de fato, um enorme interesse dos habitantes da Zona Norte por mais acesso à cultura, seja criando ou consumindo-a, averigua-se a invisibilidade da região, o que não significa a descoberta de um fato imutável, mas sim a consolidação de uma matriz para a luta. Diversos bairros suburbanos não apenas prosseguem marcados pelos prédios já existentes neles, como veem nesses estabelecimentos uma corporalidade da esperança.

Isto é, dentre diversas outras opções, “antigos cinemas podem agir como potentes catalisadores de esforços para a democratização do acesso das audiências às produções audiovisuais independentes/nacionais” (FERRAZ, 2016, p. 171). Em vista disso, restam-se questionamentos sobre as motivações para as condições atuais da cultura na Zona Norte e sobre quais são as perspectivas para que esse cenário complexo seja modificado.

Como questionou a historiadora Celeste em entrevista para a autora no dia 01/12/2018, “As pessoas acham natural não ter nada aqui no subúrbio, como natural? De  onde vem essa naturalização pra mais da metade (da população carioca)?”. Por isso é que

Adailton Medeiros não naturalizou o problema e, de dentro da região, modificou e modifica o que pode através do Ponto Cine:

A gente oferta o que há de melhor ao público, não só de Guadalupe mas do Rio de Janeiro. É raro ter uma sala igual a essa no Brasil inteiro, pode ter salas grandes, mas uma sala que se preocupa com cego e surdo? Difícil, é uma questão humanitária isso. E aí o que aconteceu? As pessoas foram se apropriando, foram desenvolvendo esse pertencimento e cuidado com a sala. Nós nunca fizemos uma reforma em uma poltrona porque cortaram a poltrona, sabe? Foi tudo porque envelheceu mesmo, 12 anos. O público foi se envolvendo tanto com isso, e aqui não tinha comércio, foi fechando o comércio, e quando nós começamos lá, também, o shopping tinha sido inaugurado e, logo em seguida, faliu, porque quem comprou as lojas não eram profissionais do comércio e, como eles não sabiam trabalhar com aquilo, consequentemente levaram o shopping junto. Quando o Ponto Cine entra e vai passando o tempo, vai restabelecendo tudo aquilo ali, o pessoal foi ocupando as salas, as lojas e foi montando esse comércio aqui, asfaltando… Os diretores indo lá, um dia o Zelito Viana, o pai do Marcos Palmeiras, veio aqui com o Ferreira Gullar mostrar um filme que eles tinham feito chamado Arte para Todos, aí o Zelito virou e falou “pensei que eu ia vir num lugar que era um puleirinho com uma tela e, de repente, é um cinema de verdade!”. Então ele perguntou o que podia fazer para me ajudar. Eu virei “po, Zelito, o que você pode fazer, é o seguinte: quando você for dar uma entrevista sobre alguma coisa, fala que em Guadalupe tem um cinema lindo, bonitinho, digno e é um cinema de verdade, mas falta sinalização, tem muito buraco, muita sujeira…”. Aí o Zelito falou isso e a primeira vez que ele falou disso, o jornal O Globo veio logo aqui, daqui a pouco veio uma outra rede de TV e eu reparei que era essa a parada que eu tinha que pedir pros  caras falarem. Todo mundo que vinha aqui eu pedia isso, daqui a pouco começa “operação tapa buraco”, sinalização, você viu que tem semáforo, rotatória, e até poda de árvore! Aí, o que acontece? Quando você vai fazendo isso, as pessoas começam a se preocupar com as fachadas das lojas, as calçadas de suas casas. Então, provocou uma revitalização local, entendeu? A gente fala que cultura é um instrumento de transformação social, mas é muito difícil provar isso subjetivamente, por exemplo, como que o meu projeto contribui pra melhora da sua vida pessoal? Mas quando você vê uma transformação física, você consegue mensurar. Toda essa cartografia aqui foi mudada por causa do Ponto Cine, uma sala de 73 lugares (Adailton Medeiros, 57 anos, idealizador e realizador do Ponto Cine).

Entretanto, o caso do Ponto Cine é somente um dos exemplos de como a cultura pode ajudar a Zona Norte, afinal, por meio de entrevistas também se tornou possível expor maneiras através das quais, pessoalmente, vidas poderiam ser modificadas. No caso de Roberto Vieira de Andrade, de 64 anos, escutou-se em tom sonhador: “Tomara que o bairro volte a ter algum espaço cultural! Eu nunca fui ao teatro, já vi muito na televisão, mas só na televisão, né? Com certeza se tivesse aqui eu iria, pelo menos uma vez eu tenho que ir ao teatro pra ver como que é, sabe?”. Ou seja, desde o século XIX até hoje, a cultura aparece como influência geográfica, social e até individual, porém se mostra ainda mais primordial nas localidades em que está menos presente.

Considerando tamanha importância, as explicações para o motivo do afastamento cultural da Zona Norte sempre giram em torno da frase “falta de política pública”. Enquanto moradores respondem opinativamente, tendo de exemplo a fala “eu acho que eles esbarram muito na política de hoje em dia e o tempo vai passando e ninguém faz nada” (César Rodrigues Silva, 54 anos, morador de Vaz Lobo desde 1970), profissionais do meio afirmam que “falta uma política pública pra esse setor” (Adailton Medeiros, 57 anos, idealizador e realizador do Ponto Cine), inclusive, aprofundando:

em que sentido? Primeiro, resgate histórico. Esses dias eu tava vendo uma cidade na Suíça que tem um museu a cada um 1km², ela tem 40km², um negócio assim, então, quando ela não tem um museu físico, ela tem obras expostas, é fantástico! Preservar a história é essencial. Esses cinemas de rua, eles têm uma história afetiva muito grande, não é só uma questão comercial, é uma questão que todo cinema que chegou a fechar, com certeza ele tem um projetor ali antigão, ele tem cartazes, ele tem uma poltrona… Aquilo ali pode se tornar um mini museu, sabe? (Adailton Medeiros, 57 anos, idealizador e realizador do Ponto Cine).

Enfim, abrem-se as possibilidades para solucionar o problema de acesso, as quais são diversas, afinal, enquanto Adailton apostou na ideia de se criarem museus, a historiadora Celeste disse sobre o Cine Vaz Lobo:

eu também não sou purista, eu acho que conservando as salas dentro com fins audiovisuais, se conservasse uma ou duas salas, alguma coisa, por mim transformava num teatro, ou aquelas salinhas em comércio […] Claro que tudo ali pra cultura seria melhor, mas a gente também tem que ver qual é a cultura do entorno, né? E teria que ter, pra segurar, alguma coisa relacionada à questão educacional (Celeste, historiadora e integrante do Movimento Cine Vaz Lobo).

Portanto, conclui-se como, seja transformando os antigos cinemas de rua em centros de cultura, em escolas de cinema, em galerias comerciais com espaço para atividades culturais, em museus ou, ainda, em outras alternativas, o que todas as entrevistas, estudos e pesquisas de campo demonstraram é uma ambição por reaberturas. A propósito, os métodos administrativos usados por cada cinema ao longo das histórias vividas por eles, exprimem como privado ou público, com filmes seletos ou comerciais, os espaços tiveram as próprias particularidades e os respectivos resultados. Em consequência, as necessárias reaberturas poderiam se inspirar no modelo do Ponto Cine, no modelo do Imperator ou criar ainda um terceiro modelo; o relevante, finalmente, é que elas aconteçam e marquem a Zona Norte.

O futuro que cria sem esquecer o passado: cenários de finalização

Não é possível repetir a importância que o cinema teve na época da chegada ao Rio, nem se faz necessário. Todavia, a história é exemplo, assim como os casos que já funcionam. Antigos prédios podem servir de ambientes para projetos culturais infindos. Também nesse caminho, novas localidades podem abrigar espaços de cultura. Portanto, sim, reabrir ou abrir espaços com o foco na cultura é relevante, considerando âmbitos distintos.

Um bairro inteiro revitalizado. Mais pessoas circulando em horários diversos. Aberturas comerciais no entorno. Geração de empregos até mesmo no espaço a ser inaugurado. Trabalhar essa questão é examinar não somente a cultura, como a manutenção da vida, para além da existência. E, antes de mais nada, o Rio de Janeiro.

A cidade saiu do Centro para todos os outros cantos e recantos. Apesar de muito se fingir que não, ela depende de todos os ambientes. Mesmo que nunca tenha existido um fim para a cultura da região ao norte do Rio, o que chega sobre o lugar para os outros locais do município é sempre desvalorizado ou distorcido, diminuindo ainda mais o interesse de investimentos. Consequentemente, para inúmeros bairros, restam antigos cinemas de rua fechados em condições de degradação extrema como lembrança de uma maior presença da cultura e, principalmente, como expectativa para um futuro mais acessível.

Contestar a hegemonia e propor uma versão mais acessível da cultura carioca é, fundamentalmente, pensar melhorias para o município como um todo.



Tainá Andrade da Silva é bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema pela PUC-Rio. Realizadora da pesquisa Espelho Quebrado: O cinema de rua no Rio e a invisibilidade da Zona Norte como monografia. Diretora do média metragem Vida e Vida, o qual aborda a migração nordestina, as relações e construções familiares, a morte e a vida. Mediava e participava da curadoria dos cineclubes intitulados Cinema de Quintal e CinePuc.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: O Globo

Notas de Rodapé

[1] FILGUEIRAS, Mariana. Apesar da promessa da RioFilme, cinemas de rua seguem abandonados. Disponível em http://biblioo.info/cinemas-de-rua-abandonados/ Acessado em 20/05/2020

[2] CARRERA, Matheus. Dez cinemas de rua do Rio que resistem. Disponível em http://infograficos.oglobo.globo.com/rio/os-cinemas-de-rua-do-rio-que-resistem.html Acessado em 20/05/2020

[3] Para compreender o quadro cultural que a Zona Norte carioca enfrenta, a autora realizou entrevistas no ano de 2018 e trechos dessas conversas aparecem como citação literal nas seções subsequentes.

[4] SOARES, Rafael. Prefeitura vai revitalizar cinemas da Zona Norte. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/prefeitura-vai-revitalizar-cinemas-da-zona-norte-5172758 Acessado em 05/05/2018

[5] MIRANDA, André. Inaugurado há dez anos, o Ponto Cine oferece cultura brasileira a Guadalupe. Disponível em https://oglobo.globo.com/rio/inaugurado-ha-dez-anos-ponto-cine-oferece-cultura-brasileira-guadalupe-19254505 Acessado em 09/04/2018

[6] MIRANDA, André. Inaugurado há dez anos, o Ponto Cine oferece cultura brasileira a Guadalupe. Disponível em https://oglobo.globo.com/rio/inaugurado-ha-dez-anos-ponto-cine-oferece-cultura-brasileira-guadalupe-19254505 Acessado em 09/04/2018

Referências Bibliográficas

ABREU, Jonas da Silva. O papel do cinema na construção da identidade da Cinelândia. Rio de Janeiro: Dissertação (Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais) – FGV – Fundação Getúlio Vargas, 2009.

ABREU, Maurício. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos. 4ª edição. 2013.

BRAGA, Rodrigo Saturnino; BRITZ, Iafa; LUCA, Luiz Gonzaga Assis de. Film business: o negócio do cinema. Rio de Janeiro: Editora Campus-Elsevier, 2010.

CARVALHO, Danielle Crepaldi. Luz e sombra no Écran: realidade, cinema e rua nas crônicas cariocas de 1894 a 1922. Campinas: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem, 2014.

DIAS, Lucia Rodrigues de Almeida. Na tela, o cine Guaraci, um artefato transformado em símbolo geográfico no cruzamento dos tempos em Rocha Miranda, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014.

FERRAZ, Talitha. Mais do que cinemas: parcerias entre esferas públicas, privadas e sociedade civil na reabertura de antigas salas de exibição no Brasil e na Bélgica. Sergipe: Revista Eptic. v. 18, n. 2. 2016.

GONZAGA, Alice. Palácios e poeiras: 100 anos de cinemas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Record/FUNARTE, 1996. SOUSA, Márcia Cristina da Silva. Entre achados e perdidos: colecionando memórias dos palácios cinematográficos e da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2013.

Fontes

CARRERA, Matheus. Dez cinemas de rua do Rio que resistem. Disponível em http://infograficos.oglobo.globo.com/rio/os-cinemas-de-rua-do-rio-que-resistem.html Acessado em 20/05/2020

FILGUEIRAS, Mariana. Apesar da promessa da RioFilme, cinemas de rua seguem abandonados. Disponível em http://biblioo.info/cinemas-de-rua-abandonados/ Acessado em 20/05/2020

MIRANDA, André. Inaugurado há dez anos, o Ponto Cine oferece cultura brasileira a Guadalupe. Disponível em https://oglobo.globo.com/rio/inaugurado-ha-dez-anos-ponto-cine-oferece-cultura-brasileira-g uadalupe-19254505 Acessado em 20/05/2020

SOARES, Rafael. Prefeitura vai revitalizar cinemas da Zona Norte. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/prefeitura-vai-revitalizar-cinemas-da-zona-norte-5172758 Acessado em 20/05/2020