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Vulneráveis dos vulneráveis: a crise sanitária nas favelas cariocas

*Por Camila Rocha e Stela Teles

[…] um sistema que relegava aos homens livres um viver à margem e um aproveitamento residual, a estrutura da sociedade escravocrata engendrou homens andarilhos, “sem vínculos, despojados, a nenhum lugar pertenceram e a toda parte se acomodaram” (WISSENBACH, 1989, p.53).

No final do século XIX, surge na região do Centro do Rio de Janeiro a primeira favela do Brasil, o Morro da Favella¹. Nas décadas seguintes, seu nome se tornou um substantivo comum para denominar lugares de características semelhantes, com concentração da população pobre por meio de domicílios em condições precárias [1]. O processo de favelização está fortemente associado à pobreza e desigualdades sociais nas cidades brasileiras, sendo resultado de uma herança histórica de injustiças sociais, econômicas e ambientais. As particularidades e construções das comunidades são tantas que fizeram com que o IBGE criasse uma classificação específica para essas localidades, denominadas tecnicamente como “aglomerados subnormais”.

Na definição do IBGE, o aglomerado subnormal é “uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas”, coincidindo com termos populares como favela ou comunidade. Em particular, esses territórios são caracterizados tanto pela precariedade nas condições socioeconômicas e ambientais como por uma baixa oferta de serviços públicos. Nesse contexto, a crise sanitária da Covid-19 evidencia a vulnerabilidade dos mais pobres, em razão de moradias superlotadas, menor acesso aos serviços de saúde e consequências econômicas do período [3].

A proposta desse texto, então, é construir um breve diagnóstico da distribuição de favelas e moradias em condições irregulares na cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de mapear as áreas de maior vulnerabilidade social e, assim, entender o contexto social a ser enfrentado pela capital fluminense. Será realizada, também, uma análise do distanciamento dos aglomerados subnormais às unidades de saúde, bem como seu tipo de atendimento. Desse modo, o recorte fornece informações à sociedade e constitui um possível instrumento metodológico às tomadas de decisões sobre saúde ambiental².

o mapeamento censitário

A amostra de aglomerados subnormais faz parte de um levantamento preliminar realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e compõe o Censo Demográfico 2020³. Além de identificar comunidades e ocupações irregulares, o IBGE forneceu, por meio de dados do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), cadastro oficial do Ministério da Saúde, as distâncias das unidades de saúde de atenção primária e estabelecimentos de saúde com suporte de observação e internação referente a essas áreas.

Os critérios oficiais de classificação do IBGE para essas áreas consideram a identificação da ocupação irregular, caso aliada à precariedade de serviços públicos essenciais, urbanização fora dos padrões vigentes e/ou restrição na ocupação.

os aglomerados subnormais

Primeiramente, é importante ressaltar que há bairros pobres que não foram contabilizados como aglomerados subnormais no censo. De acordo com o gerente-geral de Geografia do IBGE, Cayo Franco, isso ocorre porque os moradores possuem a posse da terra ou serviços de saúde e saneamento. Logo, a análise por aglomerado trata-se de “uma dimensão da vulnerabilidade, no caso, os mais vulneráveis dos vulneráveis”, que vivem em condições que levam à uma deterioração da qualidade de vida e da saúde, com exposição à riscos incalculáveis [4].

Para entender a gravidade no Rio de Janeiro, o estado é o segundo maior na quantidade de comunidades carentes do Brasil. Segundo o IBGE, dos 13,2 mil aglomerados subnormais existentes no país, o estado é responsável por abrigar cerca de 1,8 mil. Conhecida por suas favelas, a “cidade maravilhosa” contabiliza 778 dessas comunidades, ou seja, 42,5% delas estão na capital fluminense – no mapa abaixo é possível observar a distribuição de aglomerados na região metropolitana do estado.

MAPA 1 – Distribuição de aglomerados subnormais

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, 2019.
DOMICÍLIOS EM OCUPAÇÕES IRREGULARES

Diante do conhecimento da realidade habitacional mundial e visando promoção de saúde de qualidade, a Organização Mundial de Saúde (OMS) promoveu uma série de conferências internacionais a partir da I Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde (1978), na qual lançou a meta “Saúde para todos no ano 2000”. Esse movimento resultou na identificação de fatores habitacionais que influenciam na saúde da população e no desenvolvimento equilibrado da vida familiar [5]. Dessa maneira, a habitação deve ser pensada e estruturada não somente no âmbito interno, mas também em fatores sociais externos ao domicílio, que possam comprometer o bem-estar dessas pessoas [6].

É oportuno, nesse contexto, olhar a situação preocupante dos assentamentos no Rio de Janeiro: os dados preliminares do Censo 2020, disponibilizados pelo IBGE, apontam que o estado concentra 14% dos domicílios em condições de vulnerabilidade do país. Dos quase 5,7 milhões de domicílios ocupados no estado, calcula-se que mais de 717,3 mil se encontram nesses aglomerados – 12,63% das habitações totais. Analisando os municípios do Rio de Janeiro, a capital fluminense abarca 63,2% da subnormalidade do estado, com mais de 453,6 mil habitações em condições de irregularidade urbanística. Ou seja, 3 em cada 5 domicílios localizados em favelas estão na capital.

Na zona sul da capital, a Rocinha se destaca como a maior favela do país, possuindo 25,7 mil imóveis (gráfico 1). Além dela, outro aglomerado da cidade, localizado na zona oeste, figura entre os três mais populosos do Brasil: Rio das Pedras, com 22,5 mil habitações. Logo, a comparação entre a formulação da OMS e os critérios usados nas classificações dos aglomerados pelo IBGE permitem assumir que as condições das moradias do estado do Rio e, predominantemente, de sua capital, são de extrema exposição aos riscos e fragilidades socioambientais.

GRÁFICO 1 – Os dez aglomerados subnormais com mais domicílios no Rio de Janeiro-RJ (2019)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, 2019.
A CRISE SANITÁRIA EM EVIDÊNCIA

Reforçando a condição de vulnerabilidade em aglomerados subnormais, o levantamento feito pela Voz das Comunidades registra 2291 casos e 460 óbitos confirmados de Covid-19 nas favelas do Rio até o final de junho [7]. A comunidade com o maior foco de tuberculose do país, o Jacaré, é também a segunda da capital com mais casos confirmados da doença. Dados esses que confirmam a relevância de condições adequadas de moradia e saneamento básico para a saúde dos moradores, além de sugerirem a baixa funcionalidade do sistema de saúde no município [8]. Contudo, a prefeitura do Rio anunciou a reabertura gradual da cidade no início de junho, baseada na suposição da capacidade dos leitos de saúde absorverem a demanda de novos casos da doença – que será parcialmente estudada neste diagnóstico [9].

Entre as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a diminuição de risco de contágio do Covid-19, precauções simples – lavar as mãos, evitar lugares cheios e procurar ajuda médica em caso de febre e falta de ar – requerem um ambiente habitacional capacitado para proteger a população da pandemia. Nesse limiar, a resposta imediata à ameaça do vírus não é facilmente ajustada em face da realidade da localização, tamanho e condições precárias na construção. Consequentemente, observações anedóticas e algumas evidências empíricas sugerem que os mais pobres possuem pouca ou nenhuma capacidade para lidar com o vírus [10].

No mesmo sentido, é preciso levar em consideração que em regiões mais pobres as unidades de saúde⁴ são rotineiramente sobrecarregadas ou pouco funcionais [11]. Para além de uma análise da densidade habitacional, o relatório do IBGE é um parâmetro atualizado das unidades de assistência primária⁵ e dos estabelecimentos de saúde com suporte de observação e internação em áreas vulneráveis, essencial para pensar políticas de saúde desses espaços urbanos tão heterogêneos. É preciso evidenciar, no entanto, que centros privados também foram contabilizados e que não há garantias de que os estabelecimentos possuam suporte de atendimento para a Covid-19.

Como resultado do recorte feito para esse texto, constatou-se que 79,69% dos aglomerados subnormais da capital distam menos de dois quilômetros de um estabelecimento de saúde, quadro aparentemente melhor do que o nacional (64,93%). Diante disso, o mapa abaixo georreferencia as distâncias estimadas entre os aglomerados da cidade do Rio de Janeiro e as unidades de saúde mais próximas de atenção primária (a) e com suporte de observação e internação (b). A interpretação do mapa se dá pelo seguinte modo: mais próximo da cor verde, menor a distância entre a favela e a unidade de saúde; e quanto maior a distância, mais a cor se aproxima da vermelha. É possível observar que os estabelecimentos de saúde que dispõe de atenção primária se encontram mais próximos dos moradores de favela do que aqueles que oferecem suporte de observação e internação. Além disso, em ambos tipos de unidade hospitalar, destaca-se a pior oferta de unidade de saúde nas proximidades das comunidades que se encontram na zona oeste do município.

MAPA 2 – Distâncias entre as unidades de saúde e aglomerados subnormais

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, 2019.

Ao discriminar as distâncias por região no gráfico 2, verifica-se que alguns estabelecimentos de observação e internação mais próximos dos aglomerados da capital estão em outros municípios – como é caso frequente entre hospitais em São João de Meriti e ocupações irregulares na Pavuna. Consequentemente, esse também é o grupo em maior proporção de unidades de saúde no trecho superior a cinco quilômetros (9,09%). Por outro lado, quase metade das favelas da zona sul distam menos de 500 metros de uma unidade de internação e observação. Dessa forma, o diagnóstico por zonas dos estabelecimentos de saúde revela a heterogeneidade regional no acesso à rede de saúde, não explícita nas estatísticas gerais do município.

GRÁFICO 2 – Distância dos aglomerados subnormais no município do Rio de Janeiro ao estabelecimento de saúde com suporte de observação e internação mais próximo (2019) em %

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, 2019.

Nesse contexto, é pertinente ressaltar a ampla presença de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) nas áreas de maior vulnerabilidade na capital carioca: 318 aglomerados têm como unidade de observação e internação mais próxima uma UPA (40,87%). O gráfico 3 dimensiona o nível de distribuição de UPAs entre as zonas, evidenciando a consistente presença desse nível de atenção no Rio de Janeiro, quando comparada aos demais tipos de unidades. Contudo, é necessário pensar nos problemas de integração entre as unidades de saúde, considerando que o Conselho Federal de Medicina veda a internação de pacientes em UPAs.

GRÁFICO 3 – Percentual de unidades de internação e observação mais próximos às favelas da capital por zona (%)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, 2019.

As UPAs possuem dupla função: compensar a insuficiência na oferta de atenção básica e aliviar a pressão de demanda por atendimento ambulatorial⁶. Todavia, de acordo com a avaliação econométrica de Rocha e Fernandes realizada em 2016, as UPAs estariam absorvendo casos que seriam de responsabilidade dos próprios hospitais [12]. Ademais, sua estrutura simplificada⁷ não é adequada para o atendimento para os casos de síndromes respiratórias agudas, sendo vedada pelo Conselho Federal de Medicina a permanência de pacientes entubados no ventilador artificial em UPAs⁸ – o que acaba não reduzindo a vulnerabilidade da população em aglomerados nessa pandemia. Dessa forma, há distorção na finalidade de Unidades de Pronto Atendimento, transformadas, na prática, em unidades de internação de curta duração no Rio de Janeiro [13].

Em tempos de piora de indicadores como ocupação de leitos de UTI em cidades que flexibilizaram a quarentena mais rápido, é necessário ressaltar que o atendimento da UPA tem como foco casos ambulatoriais com perfil de baixo risco e que sua presença não tem efeito negativo significativo nas taxas de mortalidade – não reduz significativamente mortes nas localidades. A oferta de atendimento básico apenas diminui a pressão de demanda sobre emergências hospitalares e realoca parcialmente óbitos entre locais de ocorrência [12]. Dessa forma, a efetividade da expansão do acesso ao atendimento é limitada pela estrutura simplificada do sistema de saúde do estado. Logo, a estrutura da rede de saúde, em especial a pública, precisa ser repensada, visando a expansão e integração dos diversos tipos de atendimento para os mais vulneráveis.

CONCLUSÃO

Não parece adequado discutir saúde ambiental no estado Rio de Janeiro fora do enquadramento da condição concentrada e vulnerável das favelas na capital. Nesse limiar, a identificação dos aglomerados subnormais pelo IBGE na capital fluminense fornece subsídios para a tomada de decisão em territórios heterogêneos por meio de instrumentos metodológicos – principalmente no que diz respeito ao entendimento das medidas necessárias por autoridades. Políticas públicas que visem a adequação sanitária e de habitação surgem, então, como instrumentos de equidade, com impactos não só acerca de uma requalificação urbana e ambiental, como também proporcionando externalidades positivas na saúde da população carioca [15].

Com o grande volume de famílias em domicílios em situação de vulnerabilidade, a priorização das favelas no combate à pandemia mostra-se um caminho efetivo para diminuir a propagação do vírus e preservar vidas. É necessário, por exemplo, que, no debate público sobre enfrentamento da Covid -19, se esclareça o que motiva a reabertura da cidade. Diante do exposto, é preocupante o foco em casos ambulatoriais com perfil de baixo risco do atendimento da rede de saúde nas áreas de aglomerados subnormais. Considerando que a qualidade dos domicílios e da rede de saúde não pode ser mudada rapidamente, seria mais promissor subsidiar ou distribuir itens de higiene e verificar a possibilidade de melhoria do acesso à água no curto prazo. Ademais, no que concerne aos efeitos diretos e indiretos da pobreza sobre a capacidade de isolamento em condições de subnormalidade, medidas públicas deveriam focar no suporte ao consumo e na divulgação das informações de saúde por celulares, por exemplo [10].

Por fim, a dificuldade de encontrar estatísticas para essas áreas é mais um desafio a ser enfrentado, por potencializar o distanciamento e marginalização de quem vive nesse ambiente. Os dados são instrumentos de negociação, que possibilitam e melhoram o debate diante da construção de políticas públicas. Em termos mais amplos, o processamento de estatísticas públicas feito nesse texto busca estimular o seu uso pela prefeitura, capacitando seu auxílio para a população que se encontra em situação de vulnerabilidade. Ou seja, conhecer a vida à margem e proporcioná-la mais do que um aproveitamento residual [16].



Camila Rocha é graduanda em Economia pela UFRJ. Possui experiência profissional em estudos econômicos voltados para elaboração de políticas públicas e análise de impacto nas políticas governamentais. Além disso atuou como assistente de pesquisa com foco em indústria e comércio exterior.


Stela Teles é graduanda em Ciências Econômicas pela UFRJ. Atua com estatísticas públicas, possui experiência em Comércio Exterior.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Andy Valconer/Unsplash

Notas de Rodapé
¹ conhecida hoje como Morro da Providência, ela recebeu esse nome inicialmente devido à semelhança a outro muito conhecido durante a guerra de Canudos.

² segundo a OMS, saúde ambiental é definido como: “são todos aqueles aspectos da saúde humana, incluindo a qualidade de vida, que estão determinados por fatores físicos, químicos, biológicos, sociais e psicológicos no meio ambiente. Também se refere teoria e prática de valorar, corrigir, controlar e evitar aqueles fatores do meio ambiente que, potencialmente, possam prejudicar a saúde de gerações atuais e futuras”

³ O IBGE informa que os resultados definitivos dos Aglomerados Subnormais serão divulgados após finalização da operação censitária, que está previsto para até 2021 devido à pandemia da COVID-19. Para mais informações, ver: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-territorio/15788-aglomerados-subnormais.html?=&t=sobre

⁴ Hospital Especializado, Hospital Geral, Pronto Atendimento, Pronto Socorro Especializado, Pronto Socorro Geral e Unidade Mista

⁵ os estabelecimentos considerados de assistência primária para a presente análise foram os Centros de Apoio à Saúde da Família – CASF, Unidades Básicas de Saúde, Consultórios de Saúde Pública, Postos de Saúde e Unidades de Atenção à Saúde Indígena. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101717_notas_tecnicas.pdf

⁶ Essa dupla função das UPAs faz parte do discurso oficial da Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro (O’Dwyer, 2010, apud Rocha e Fernandes, 2016)

⁷ Raio-X, eletrocardiografia, pediatria, laboratório de exames e leitos de observação.

⁸ https://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucao2079.pdf

Referências Bibliográficas

[1] VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Revista brasileira de ciências sociais, v. 15, n. 44, 2000.

[2] DE FRANÇA, Mateus Cavalcante. POBREZA, DESIGUALDADE E FAVELIZAÇÃO: investigando elementos associados ao crescimento de aglomerados subnormais. Revista Húmus, v. 10, n. 28, 2020.

[3] O Combate à Pandemia Covid nas Periferias Urbanas, Favelas e Junto aos Grupos Sociais Vulneráveis: Propostas imediatas e estratégias de ação na perspectiva do direito à cidade e da justiça social – IPPUR/UFRJ, 2020.

[4] “Quase dois terços das favelas estão a menos de dois quilômetros de hospitais” – Agência de Notícias do IBGE, 2020.

[5] HERMETO, Mateus Porto. Habitação saudável: ampliando a atenção à saúde. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v. 16, n. 18+ 19, 2009.

[6] COHEN, Simone Cynamon et al. Habitação saudável e biossegurança: estratégias de análise dos fatores de risco em ambientes construídos. Saúde em Debate, v. 43, p. 1194-1204, 2020.

[7] “Favelas do Rio registram 15 novos casos e 4 mortes de Covid-19 nesta terça-feira (30)” – Voz das Comunidades, 2020.

[8] “Favela do RJ com maior foco de tuberculose do país tem poucas defesas contra coronavírus” – Uol, 2020.

[9] “Rio anuncia reabertura gradual a partir de terça; veja o que será permitido” – G1, 2020.

[10] BROWN, Ravallion, Van de Walle. Can the world’s poor protect themselves from the coronavirus?. National Bureau of Economic Reserch, 2020.

[11] RAVAILLON, Martin. Pandemic policies in poor places. Center for Global Development, 2020. https://www.cgdev.org/publication/pandemic-policies-poor-places

[12] KONDER, Mariana; O’DWYER, Gisele. As Unidades de Pronto Atendimento como unidades de internação: fenômenos do fluxo assistencial na rede de urgências. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 2019.

[13] ROCHA, Rudi; FERNANDES, Lucas Merenfeld da Silva. O Impacto das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) 24h sobre indicadores de mortalidade: evidências para o Rio de Janeiro. 2016.

[14] “Cidades de SP que iniciaram maior abertura tiveram alta acima da média em internações” – Folha de São Paulo, 2020.

[15] NASCIMENTO, Maria Odete Teixeira do; FILGUEIRA, Hamilcar José Almeida; SILVA, Tarciso Cabral da. Metodologia para priorização de ações em aglomerados subnormais considerando os riscos de deslizamentos e inundações e as condições de moradia. Engenharia Sanitaria e Ambiental, v. 18, 2013.

[16] MOTTA, Eugênia. Resistencia a los números: la favela como realidad (in) cuantificable. Mana, v. 25, n. 1, 2019.


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Mudança de Normas Sociais e o Combate à Violência Contra a Mulher no Rio de Janeiro (Parte 2/2)

*Por Maria Oaquim e Renata Ávila

normas sociais e violência

Os homens se encontram sobre-representados dentre os perpetradores de violência. Segundo a UNODC (2011), em 2012, 95% dos sentenciados por homicídio, ao redor do mundo, eram homens. Apesar de algumas teorias apontarem correlação entre níveis de testosterona e comportamento violento, as evidências são inconclusivas e insuficientes para explicar as disparidades de gênero (Duke et al, 2014; Fleming et al. 2015). Outros estudos relacionam aspectos da socialização dos homens, como dominância, poder e demonstração de virilidade, à perpetração de violência contra as mulheres. Assim, assédio na rua, no trabalho, violação sexual e violência física seriam formas de intimidação das mulheres e demonstração de poder sobre elas.

É importante pontuar que a masculinidade e a feminilidade não nascem com os indivíduos, mas são conceitos socialmente construídos e, assim, relacionados ao meio e ao momento histórico vivido. Dessa maneira, o gênero é um aspecto fortemente ligado às ações e aos comportamentos dos indivíduos. Para muitos homens serem aceitos pelos seus pares, eles ainda devem seguir uma série de comportamentos compatíveis com o padrão da masculinidade hegemônica como virilidade, falta de expressão de emoções e dominância sobre as mulheres (Fleming 2013).

Para além disso, a estrutura da sociedade ainda estabelece uma relação de poder entre os gêneros que ajuda a perpetuar a violência contra as mulheres. A divisão sexual do trabalho dita um padrão onde o homem cumpre o papel de provedor financeiro da família (também vista como um papel de “chefe” da família) e a mulher é majoritariamente encarregada de cuidar dos filhos e afazeres domésticos. Apesar de avanços na participação do trabalho feminino, no Brasil, segundo dados da PNAD Contínua para 2019, o diferencial de rendimentos entre os gênero na cidade do Rio de Janeiro ainda permanece em patamar de 23% e as mulheres gastam quase que o dobro de horas com tarefas não assalariadas (como cuidar de crianças, idosos e afazeres domésticos). Quando há uma discrepância entre o que se é esperado pelo padrão de masculinidade e quando a relação de dominância masculina e subordinação feminina é ameaçada, modelos teóricos e evidências empíricas sustentam que homens recorrerem à violência para restabelecimento de sua dominância (Macmillan and Gartner, 1999). Como argumentado por Acosta e Barker (2003), a socialização dos homens corrobora com a utilização de agressões verbais ou mesmo físicas caso as mulheres não cumpram com aquilo que lhe é visto como sua obrigação, como cuidar da casa, filhos e prover sexo.

Ademais, normas que enxergam a violência doméstica como um assunto familiar privado – como pode ser ilustrado pelo ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”- e que justificam o uso da violência para garantia da “honra” dificultam a quebra do ciclo da violência por parentes e vizinhos que testemunharam os atos. Além disso, a condenação moral do divórcio e uma visão bastante difundida em nosso país que as mulheres devem “aguentar situações de adversidade” para preservar sua família influenciam para que a mesma não denuncie ou não se afaste de seu agressor.

Além do respaldo teórico, evidências empíricas apontam que programas que visam à mudança de opiniões e atitudes acerca da igualdade de género, inclusive incluindo os homens nesse processo de transformação, podem reduzir a violência contra a mulher. Apesar de uma quantidade significativa de programas que visam à mudança de normais sociais terem sido implementados, muitos deles carecem de uma avaliação de impacto com metodologia rigorosa. Dois programas implementados sob o padrão de ouro para avaliações com inferência causal, ou seja, seguindo um experimento aleatorizado (Randomized Control Trial, RCT na sigla em inglês) apresentaram resultados positivos com relação a opiniões e atitudes relacionadas à violência contra mulher. Hossain e outros (2014), ao avaliarem um programa de grupo de discussão de homens na Costa do Marfim, encontram uma menor intenção de usar a violência por parte dos homens, melhora na capacidade dos homens de manejar conflitos de maneira não hostil e aumento da participação masculina em tarefas domésticas . Abramsky e outros (2014) avaliam o programa SASA! na África do Sul, que consiste no engajamento de comunidades para prevenção de violência e risco de contrair o HIV. Ao final do programa, os habitantes (tanto homens quanto mulheres) das cidades que receberam a intervenção apresentaram menor aceitabilidade com relação à violência contra uma parceira íntima e maior aceitabilidade quanto à mulher poder recusar ter relações sexuais. Também ocorreu, nas comunidades que receberam o programa, uma queda no número de mulheres relatando ter sofrido violência física e sexual em comparação com as comunidades que não receberam. Além disso, dentre as mulheres que foram vítimas de violência nesses locais, cresceu o número daquelas que relataram ter recebido suporte da comunidade.

VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO

A fim de pensar nas políticas públicas necessárias ao combate à violência doméstica no município do Rio de Janeiro é fundamental o entendimento do contexto vivenciado por diversas regiões da cidade. Primeiramente, temos evidências de persistência de opiniões que corroboram com a violência doméstica. Em uma pesquisa realizada em 2009 com homens e mulheres em comunidade de baixa e média renda no Rio de Janeiro, 21% dos homens de comunidade de baixa renda responderam concordar com a frase “há momentos em que uma mulher merece ser violentada”. Em contraste, 8.5% das mulheres em tais comunidades e 5% de homens entrevistados que viviam em locais de renda média concordaram com a afirmação. Surpreendentemente, o número de mulheres em comunidades de renda média que concorda com tal sentença é de 15%. Já quando tal estudo apresentou supostas justificativas para cometer um ato violento contra uma mulher, 37,6% dos homens concordaram com pelo menos uma delas, dentre as quais constava ”se vestir de modo provocante”, não cuidar dos filhos e traição por parte da mulher (Acosta e Barker 2003). Além disso, 36% dos homens e 23.3% das mulheres em comunidades de baixa renda (14% dos homens e 17.5% das mulheres de classe média) dizem concordar que se a mulher não “lutou contra” fisicamente, não se pode afirmar que foi estupro.

Ademais, quando pensamos em políticas para o município, é importante lembrar que muitas regiões da cidade vivem em um contexto de intensa violência urbana. Nesse sentido, a violência vivida nas ruas se associa à violência intrafamiliar: tanto ela influencia na construção de masculinidades, como no uso da força como demonstração de poder. Além disso, a experimentação da violência domiciliar na infância está associada à maior propensão a atividades criminosas no futuro (IMAGES, 2016). Dessa maneira, a construção de novas masculinidades pode contribuir para a construção de uma trajetória não-violenta na vida dos homens.

Pensando Políticas Públicas para o Combate à Violência Doméstica no Rio de Janeiro

A subnotificação de casos de violência doméstica não nos permite ter uma real dimensão das mulheres vitimadas na cidade. Dentre os questionários domiciliares realizados pela pesquisa IMAGES (2016), 46,3% dos homens na região norte e 38,7% na região sul relataram ter cometido violência contra suas parceiras, um percentual demasiado alto, em especial se pensarmos que muitos homens podem não querer relatar que cometeram um crime. Contudo, quando contrastado com a resposta das mulheres, um percentual muito próximo relatou ser vítima de violência na Zona Norte, mas esse percentual de mulheres vitimado foi ainda maior na Zona Sul (51,6%).

Uma pesquisa domiciliar representativa de mulheres cariocas que buscasse mensurar a vitimização e identificar os grupos mais vulneráveis (por região geográfica, faixa etária, nível socioeconômico etc) seria de primeira relevância para melhor focalização e consequente efetividade de certas políticas públicas. Um exemplo de pesquisa com metodologia rigorosa aplicada nas capitais do Nordeste do Brasil é o PCSVDF-Mulher. O questionário aborda, com caráter longitudinal, questões de saúde geral e reprodutiva das mulheres, normas sociais e conhecimentos sobre a Lei Maria da Penha, poder de barganha e experiência de violência (Carvalho e Oliveira, 2018). Além dessa metodologia já aplicada no Brasil, a literatura internacional aponta métodos inovadores para lidar com subnotificação em questionários de violência doméstica, garantindo a anonimidade das vítimas (Field e outros, 2019).

Como já debatido, a experiência internacional nos demonstra que programas envolvendo mudanças de normas sociais na direção de opiniões e atitudes mais igualitárias têm efeitos positivos na redução de violência contra as mulheres. Acreditamos que programas neste âmbito se apresentam como uma lacuna importante no combate brasileiro à violência contra mulher. Os projetos e iniciativas que envolvem mudanças de normas sociais são, em sua maioria, implementados por ONGs e não possuem grande abrangência territorial/populacional. Apesar disso, certos programas trazem metodologias muito interessantes como o Programa H, implementado pela ONG Promundo. O propósito do programa é engajar homens que questionam visões tradicionais de masculinidade em um processo de transformação de opiniões e atitudes de outros homens. Um dos componentes do programa consiste em um currículo de atividades abrangendo discussões sobre violência, saúde mental nos homens, inteligência emocional, comunicação e diálogo, abuso de substância, saúde sexual e reprodutiva e reflexões sobre a socialização de meninos e homens. Essa abordagem inspirou o Ministério da Mulher do Peru a adotar programas similares a nível nacional. As regiões rurais do país estão recebendo uma intervenção a nível comunitário que consiste em sessões de grupo segregadas por gênero a fim de discutir desigualdade entre homens e mulheres, violência doméstica, relações familiares e empoderamento feminino.

Acreditamos que uma melhor identificação dos casos de violência doméstica é o primeiro passo para avaliarmos a eficácia de um programa que vise a reduzi-la. Além disso, advogam por uma avaliação com metodologia adequada, onde, de preferência, poderemos argumentar com mais robustez que os resultados ao final do programa tenham sido consequência daquela política específica. Um exemplo seria o experimento aleatorizado. Nessa configuração, comunidades no município do Rio poderiam ser sorteadas para receber primeiramente certo programa, compondo, assim, um grupo de tratamento e os resultados seriam comparados com as comunidades que receberiam o programa depois (grupo de controle).

Uma das desvantagens de certos experimentos aleatorizados é que eles podem ser custosos, em especial se envolverem presença física de agentes e locação de espaço. Isso não significa que sua custo-efetividade não possa ser alta, em especial se considerarmos que com uma avaliação rigorosa podemos ter maior evidências da efetividade das políticas para um possível aumento de escala. Contudo, outras políticas menos custosas podem ser avaliadas também via um experimento aleatorizado. Cooper e outros (2019) avaliam um RCT em que o tratamento consiste na exibição de vinhetas que abordam a violência contra a mulher durante os intervalos de um festival de cinema na Uganda. As vinhetas apresentam vizinhos e familiares que, cientes de que uma mulher era violentada pelo seu marido, não denunciavam o caso. A vítima acaba com um final trágico. Essa estratégia de edutainment (ou seja, que combina entretenimento e educação) se mostrou efetiva: mulheres em comunidades tratadas (onde as vinhetas foram exibidas) têm probabilidade 11% maior de denunciar casos de violência à polícia em comparação com o grupo de controle.

Uma outra abordagem relacionada à mudança de normas sociais envolve a discussão da igualdade de gênero nas escolas. Dhar e outros (2018) avaliam um experimento na Índia que consiste no debate de tópicos como estereótipos e papéis de gênero, emprego de mulheres e assédio.Essa intervenção ocorreu em turmas de séries equivalentes ao final do Ensino Fundamental II no Brasil. Os resultados da intervenção se mostraram positivos em mudar opiniões sobre igualdade de gêneros e até em mudar atitudes de meninos, como maior participação em tarefas domésticas. A discussão de papéis de gênero entre adolescentes é desejável pois essa faixa etária se apresenta como um momento crítico na formação da identidade e opiniões. Os autores argumentam que eles são jovens para serem suscetíveis a mudanças, mas maduros para poderem fazer uma reflexão crítica sobre temas mais complexos.

Nosso objetivo com esse texto não é trazer uma proposta concreta de política pública a ser implementada, nem defender um método único para avaliação de alguma política. Visamos com esse texto fomentar o debate, baseado nas evidências nacionais e internacionais, sobre a necessidade de uma transformação de normas sociais a fim de combater a violência contra a mulher. Necessitamos urgentemente de mais e melhores dados que nos ajudem a entender melhor o fenômeno da violência doméstica em nosso país e como efetivamente podemos enfrentá-lo. Para além disso, cremos ser essencial que os formuladores de política pública estejam determinados a avaliarem as políticas que eles formulem. Que os próximos 4 anos de governo municipal sejam uma oportunidade para nossa cidade avançar em sentido de maior igualdade de gênero!



Maria Oaquim é membro da Iniciativa RioMais. Mestranda em Economia na PUC-Rio e formada pela mesma universidade. Trabalhou em projetos acadêmicos na área de Economia do Trabalho, Desigualdade de Gênero e Crime e em avaliação de políticas públicas relacionadas à Violência de Gênero.


Renata Ávila é formanda em Economia pela PUC-Rio, com intercâmbio acadêmico na Universidade da Califórnia, Berkeley. Possui experiência profissional em Macroeconomia e como assistente de pesquisa em Economia Política.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Bacia de Campos: Principais Operações/Petrobras

Referências Bibliográficas
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A Baia de Guanabara em perspectiva: alavanca do desenvolvimento metropolitano

*Por Michel Misse Filho

Enquanto perdura o isolamento social, esporadicamente aparecem vídeos na internet exibindo as águas transparentes de uma baía acostumada à poluição. Apesar da atual diminuição do tráfego de barcos ter sua importância na redução de poluição sonora, especialistas já afirmaram que não se trata, na realidade, de uma efetiva limpeza gerada pela quarentena — os reais fatores são os efeitos do outono [1], o período de seca, as alterações na maré [2] e, no caso de Botafogo, até uma barreira de lixo no centro da baía que a corrente marítima não pode ultrapassar [3]. De qualquer forma, a esperança gerada pelos vídeos deve servir, ao menos, para trazer o tema de volta à tona, vislumbrando uma baía possível, longe do lugar-comum que a coloca como ambiente morto e sua despoluição, portanto, como inexequível.

Sabemos que discutir questões socioambientais no âmbito fluminense é, inevitavelmente, abordar a poluição da Baía de Guanabara. Porta de entrada física e simbólica do Rio para o mundo, ambiente natural e histórico constitutivo da própria gênese da cidade, tornou-se comum, já há anos na opinião pública, a associação quase que intrínseca entre baía e degradação ambiental. O imaginário foi enraizado em décadas de maus-tratos e promessas não cumpridas, e parece também confinar a sonhada despoluição ao rol das impossibilidades.

Já não é novidade apontar os resultados abaixo do esperado do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), assinado há 26 anos. Com gastos acima de U$ 1 bilhão, as estações de tratamento de esgoto seguem operando muito aquém da capacidade total, sem a construção das devidas redes coletoras. A maior parte dos dejetos de milhões de habitantes sequer chega às estações, e transforma-se, assim, no principal passivo ambiental da baía: estima-se que ela recebe, por segundo, cerca de 18 mil litros de esgoto sem tratamento, fora as dezenas de toneladas de resíduos sólidos, chorume e poluição industrial.

UMA TRAJETÓRIA DA POLUIÇÃO

Voltemos algumas décadas na história carioca e compreendamos, contudo, a poluição enquanto processo. Se a baía vem sendo acometida ambientalmente desde o início da colonização — desmatamento e pesca de baleias, por exemplo —, foi em meados do século XX que se começou a sentir, no meio científico, o agravamento dos efeitos da poluição. Pesquisas realizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz na Ilha do Pinheiro (hoje aterrada junto à parte do Complexo da Maré) identificavam, ainda em 1957, a repentina transformação ambiental da região nos vinte anos anteriores ⁴. O aumento no fluxo de esgotos domésticos e industriais, aliado aos sucessivos aterros em Manguinhos e na Ilha do Fundão fizeram desaparecer, já naquela época, estrelas do mar, ostras, mariscos, guaiamuns, espécies de camarões e diversos peixes. Constituiu-se assim, na extinta Enseada de Inhaúma, o primeiro polo de elevada poluição da baía.

É também de 1957 a primeira matéria do Jornal O Globo a utilizar o termo “poluição” em alusão às águas da Guanabara, denunciando o desaparecimento de peixes. A inserção desta pauta no noticiário responde, certamente, ao maior interesse da sociedade por questões ambientais naquele momento, mas também manifesta a própria intensificação da poluição hídrica, à medida que indústrias poluidoras — como a Refinaria Duque de Caxias (1961), Bayern do Brasil (1958) e Refinaria de Petróleo de Manguinhos (1954) — chegavam ao Rio e o processo de urbanização se intensificava.

A população carioca crescia vertiginosamente, e segundo Enaldo Cravo Peixoto, diretor do Departamento de Esgotos Sanitários da época, a relação entre o tamanho da rede de esgotos e a população que era, ao final do século XIX, de 1,10m por pessoa, chegava em 1959 com apenas 0,27m [5]. Com o déficit sanitário e o intenso crescimento populacional, as consequentes denúncias ambientais percorrem as décadas seguintes, como mostra o gráfico da relação entre matérias de poluição na baía por década e o aumento populacional da cidade.

GRÁFICO 1 – Matérias de poluição x Aumento da população carioca

Fonte: Acervo Digital do Jornal O Globo; e IBGE, Censo Demográfico 1920, 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 e 2000.  

Pesquisando a fundo, é interessante notar que o momento de aclive das notícias (especificamente o verão de 1970) se deu em função de uma controvérsia entre mídia e Poder Público acerca de um surto de hepatite: “Médicos atestam hepatite em praias poluídas”[6], afirmava o jornal, enquanto a antiga Superintendência de Urbanização e Saneamento do Estado da Guanabara (SURSAN) negava prontamente. O fato é que a pauta da poluição da baía ganhou outra dimensão justamente quando a questão da flora e fauna (denúncias sobre desaparecimento de peixes, por exemplo) deu lugar à saúde pública, nova protagonista do debate.

O problema chegava, pela primeira vez de forma contundente, à maior parte da população. Hoje, em pleno século XXI, a situação de municípios periféricos permanece em níveis pré-industriais, com o crescimento populacional da região metropolitana, cuja maior parte — mais de 8 milhões de pessoas — localiza-se na Região Hidrográfica da Baía de Guanabara (RHBG). Com exceção de Niterói, todas as cidades que compõem a bacia drenante da baía têm defasados sistemas de esgotamento sanitário, principal desafio do Programa de Saneamento dos Municípios no Entorno da Baía de Guanabara (PSAM), assinado para os Jogos Olímpicos de 2016. Sucessor do velho PDBG, conta com outro financiamento bilionário, obras inacabadas e verbas retidas.

As cidades de Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti figuram entre os dez piores índices de tratamento de esgoto do país, segundo o ranking do instituto Trata Brasil1, mas não são as únicas. Há também municípios com dados discrepantes em relação às pesquisas de anos anteriores, e a pouca transparência das informações coexiste com a péssima qualidade dos 143[7] rios e córregos que desaguam na baía, carregando consigo os esgotos de 16 municípios.

GRÁFICO 2 – Tratamento de esgoto por município da RHGB (2018)

Fonte: SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Ano 2018, disponível em: http://www.snis.gov.br/diagnostico-anual-agua-e-esgotos/diagnostico-dos-servicos-de-agua-e-esgotos-2018

FIGURA 1 – Mapa de qualidade da água da Baía de Guanabara

Fonte: dados do Boletim de Qualidade da Água do Instituto Estadual de Ambiente (INEA). Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/apps/MapSeries/index.html?appid=3eca938e673f4f81a77f9849e76df7fb
BALNEABILIDADES E DESIGUALDADES

Os péssimos indicadores ambientais são conhecidos da sociedade, não sendo preciso acompanhar rotineiramente os boletins de balneabilidade do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), com mais de 30 praias no interior da baía, para saber que a maioria delas está quase sempre imprópria para banho. No entanto, após décadas de intenso noticiário de denúncias ambientais, um curioso fenômeno emerge para o observador, evidenciando um recorte de classe: a população fluminense, no direito de ir à uma praia balneável, partilha de uma percepção estigmatizada das praias da baía, obscurecendo belezas e ambientes que ainda teimam em resistir.

Alguns exemplos: praias como a Moreninha e José Bonifácio, na Ilha de Paquetá (ajudadas geograficamente pela corrente central que renova as águas da baía); Icaraí, Charitas e Adão, em Niterói; e mesmo a praia da Bica, na Ilha do Governador, com todos os seus problemas, ostentam proporcionalmente índices de balneabilidade semelhantes a praias oceânicas de bairros abastados como São Conrado, Pepê (Barra da Tijuca) e, eventualmente, Leblon. A tabela abaixo compara o percentual de boletins de balneabilidade (a proporção de dias próprios para banho sob o total de amostras) das referidas praias, utilizando os dados dos testes realizados pelo INEA.

TABELA 1 – Percentual de boletins próprios para banho em praias oceânicas e da baía

Praias (localização)201920182017201620152014
Barra da Tijuca (Pepê)33%36%46%65%32%51%
São Conrado (nº 220)57%35%29%17%5%19%
Leblon (Afrânio de Melo Franco)44%60%88%61%57%49%
Bica (Henrique Lacombe)*61%35%67%32%0,1%0%
Moreninha66%70%87%75%46%76%
José Bonifácio52%66%85%58%50%61%
Icaraí (Otávio Carneiro)69%68%77%64%75%85%
Charitas (Santa Cândida)52%65%75%43%52%60%
Adão90%89%93%87%95%74%
* Total de boletins emitidos significativamente menor que o de outras praias. Em 2019, por exemplo, foram realizados 18 testes, e a praia da Bica esteve própria em 11.

Exceções da regra devidamente expostas, as informações de balneabilidade comparando baía e praias oceânicas são contrastantes: a Guanabara tem 15 praias que estiveram impróprias em todos os boletins de 2019; já nas praias oceânicas, 16 (contando com a Praia Vermelha) estiveram próprias em mais de 90% dos boletins do ano. Embora não seja o melhor exemplo sanitário, o lançamento (sem tratamento) dos dejetos da Zona Sul após as Ilhas Cagarras pelo emissário submarino de Ipanema garante, ao menos, a boa balneabilidade de parte das praias oceânicas, ajudadas pela ininterrupta troca de água do mar aberto. As praias do recôncavo da baía, sem a mesma sorte, recebem maior carga orgânica e o tempo médio de renovação de 50% das águas da baía é de apenas 12 dias.

O debate sobre balneabilidade é um primeiro ponto crucial, reflexo das variadas condições socioambientais dentro de uma mesma região metropolitana. É mais necessário, ainda, impor ao debate da baía as muitas desigualdades vinculadas à sua poluição, desdobrando o tema para além de uma dimensão ambiental. Não se trata de menosprezar a vital importância da biodiversidade local, em que destacamos negativamente o decrescente número de golfinhos da baía — símbolos do brasão municipal, as centenas de espécimes nos anos 1980 se reduziram a menos de 30 hoje. Ao contrário, a ampliação “para além do ambiental” deve servir justamente à maior sensibilização da sociedade e à necessidade de priorização da pauta pelo Poder Público.

A primeira desigualdade a ser abordada, já introduzida no texto, é clara: as diferenças no acesso ao saneamento básico. Por mais que, no Rio, o drama do saneamento permeie a maior parte da população, é ainda assim notável a discrepância do centro/sul metropolitano para o subúrbio carioca, Baixada Fluminense e São Gonçalo, evidente no mapa abaixo.

FIGURA 2 – Mapa da rede de esgotamento geral do entorno da baía (em azul)

Fonte: Estudo Regional de Saneamento da Baixada Fluminense – ERSB 2013. Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/

O mapa metropolitano de saneamento fluminense está espelhado, por sua vez, em indicadores sociais e econômicos. A usual análise que trata de uma metrópole dividida entre os bairros ao sul (Zona Sul, Barra da Tijuca e parte de Niterói) e as periferias, também poderia ser interpretada como a cidade “oceânica” e a cidade “da baía”: quanto mais próximo ao fundo da baía, piores são os indicadores socioeconômicos, como mostra, abaixo, o mapa do Índice de Desenvolvimento Social da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Aludimos, também, à importância balneária na formação dos bairros de elite, quase todos constituídos próximos às boas praias de se tomar banho. As exceções localizadas no interior da baía (Botafogo, Flamengo, parte da Ilha do Governador e Icaraí) são bairros ocupados justamente num momento anterior à poluição generalizada.

FIGURA 3 – Mapa do Índice de Desenvolvimento Social (IDS) da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Fonte: Estudo Regional de Saneamento da Baixada Fluminense – ERSB 2013. Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/

Seguindo no argumento das assimetrias, se colocarmos em evidência a divisão racial da região, teremos um mapa semelhante aos dois últimos, com a maior concentração de pessoas negras nos bairros não oceânicos. O caso da poluição na baía não é diferente da já histórica relação brasileira entre raça, indicadores socioeconômicos e acesso ao saneamento, e corrobora, em abordagens socioeconômicas e étnicas, a desigualdade de riscos ambientais socialmente induzidos. Parece mais um caso de racismo ambiental quando verificamos que, ao longo do recôncavo da baía, as populações com maior concentração de negros, além de desprovidas de redes mínimas de saneamento básico, com consequente contaminação de recursos hídricos, ficam localizadas mais próximas às zonas industriais da metrópole ou mesmo de grandes “lixões” ilegais.

FIGURA 4 – Mapa racial do entorno da Baía de Guanabara

Fonte: Estudo Regional de Saneamento da Baixada Fluminense – ERSB 2013. Disponível em: http://psam.maps.arcgis.com/
A DESPOLUIÇÃO COMO MOTOR DE DESENVOLVIMENTO

A pertinência de abordar esses pontos é ainda maior quando levamos em conta a importância da praia não apenas como símbolo de uma metrópole turisticamente balneária, mas enquanto lugar de pertencimento de diferentes populações. Ter um olhar abrangente para a baía passa, fundamentalmente, pela percepção dos vínculos existentes em toda a região, isto é, compreendendo a extensão dos impactos sob o ponto de vista das sociabilidades urbanas e vinculações comunitárias das localidades e bairros margeados pelas águas da Guanabara. Algumas das perceptíveis consequências compreendem desde hábitos de lazer (como o usufruto das praias da baía) aos deslocamentos territoriais forçados: moradores das periferias levados a frequentar mais as praias da Zona Sul do Rio e Niterói, e o preconceito alimentado nesses “conflitos territoriais”, bem como a estigmatização dos seus territórios de origem, tidos como malcheirosos, fétidos e sanitariamente inadequados.

A restrição de uso das dezenas de praias da baía parece configurar, assim, ao menos dois fenômenos que colapsam a distinção entre “degradação da natureza” e do “social”: a perda do potencial de vinculação comunitária e de pertencimento territorial dos moradores das zonas suburbanas do Grande Rio; e o acirramento de experiências de segregação entre as periferias e as zonas sul e oeste carioca e fluminense. Os moradores das regiões mais abastadas deixam de conhecer e frequentar o que poderiam ser as belezas de dezenas de localidades no recôncavo, levando em conta ainda que a experiência de “ir à praia” constitui, mais do que simplesmente tomar um banho de mar, um impulso econômico e a construção de um inerente lugar de florescimento sociabilidades.

O real dimensionamento dos impactos metropolitanos referentes à poluição da baía é, por certo, primeiro passo fundamental para a devida abordagem do problema. Mas e as potencialidades? A força da imaginação, projetando cenários de despoluição da baía, pode nos levar, sem exageros, a uma mudança de rumo: a Baía de Guanabara, diagnosticada como um dos principais atoleiros do desenvolvimento metropolitano, não pode deixar de ser tratada como alavanca fundamental para a necessária redução de desigualdades socioeconômicas da região.

Alguns dos benefícios da expansão do saneamento na região foram valorados e expostos num relatório de 2014, produzido para o Instituto Trata Brasil ⁸. Caso o saneamento fosse universalizado, além da significativa diminuição do número de internações no SUS por doenças gastrintestinais infecciosas, estimou-se que, em duas semanas, quase 5 mil dias de afastamento do trabalho poderiam ser evitados, gerando um ganho de renda do trabalho da ordem de R$ 4,6 bilhões no ano (2012) — retornando, através de impostos, parte do valor para os governos. O estudo leva em conta, ainda, os potenciais ganhos por efeito do aumento da escolaridade, já que a falta de saneamento básico seria um fator de atraso escolar. Nesse caso, somariam mais R$ 3,29 bilhões que, agregados ao ganho pela diminuição do afastamento de trabalho, implicariam em um aumento de 9,2% na remuneração do trabalho, segundo as perspectivas daquela época.

O valor total que beneficiaria os municípios do entorno da baía, ainda segundo este relatório, ultrapassaria os R$ 30 bilhões em trinta anos, somando os ganhos imobiliários, turísticos e com redução de custos de internação — valor um pouco maior do que os R$ 27 bilhões que, à época, eram estimados para universalizar o saneamento da região. Contudo, é evidente, por si só, a complexidade de um estudo de valoração deste tipo, sobretudo um realizado já há 6 anos. Embora não deva ser levado “ao pé da letra”, serve, ao menos, ao delineamento possível de um horizonte promissor que o saneamento permite ao desenvolvimento metropolitano.

Sob o ponto de vista turístico, uma série de fatores devem ser considerados e, mais do que qualquer estudo, apenas a efetiva despoluição poderia descortinar uma série de possíveis impactos em efeito dominó. A subutilização turística da parte mais esquecida da baía (o lado ao norte da Ponte Rio – Niterói) inclui, por exemplo, localidades como as belas praias nas ilhas de Paquetá, Brocoió, Jurubaíba e Tavares; as praias da Ilha do Governador e da Ilha do Fundão; a Igreja da Penha e a Praia de Ramos; a região de Magé, antiga Guia de Pacobaíba, com a primeira estação ferroviária do país; toda região de manguezais da Área de Proteção Ambiental de Guapi-Mirim, emoldurada pelas silhuetas da região serrana, ao fundo; as isoladas e bucólicas praias da Luz e São João em Itaoca (São Gonçalo); além do ecoturismo subaquático, mergulho e observação de espécies que tentam sobreviver.

Ainda assim, levando em conta a baía como um todo, não podemos apartar seu espelho d’água dos dois maiores pontos de visitação do estado: o Corcovado (que pouco valeria sem a vista a partir da enseada de Botafogo), que recebe em torno de 1,7 milhão de visitantes ao ano, e o Pão de Açúcar, na entrada da baía, com cerca de 1,5 milhão de visitas anuais ⁹. O trabalho de olhar a baía por um viés econômico, realizado em um artigo pelo economista da UFRJ, Carlos Eduardo Young, e por Rodrigo Medeiros, geógrafo da UFRRJ, aponta outro cenário de valoração econômica. Mesmo um “exercício simples”, segundo os autores, evidencia a importância econômica em função do alto número de visitantes dos pontos turísticos da baía.

Assumindo, de forma conservadora, um gasto médio diário de R$ 300,00 por pessoa por dia de visita […], e um efeito multiplicador de 1,5, pode-se estimar que a demanda econômica gerada pela visitação relacionada à Baía de Guanabara é de pelo menos R$ 2,7 bilhões anuais. […] Por outro lado, deve-se considerar que o custo das oportunidades desperdiçadas também se situa na casa dos bilhões de reais anuais. […] Por fim, deve-se considerar outras dimensões de valores que, embora sejam mais difíceis de monetizar, são talvez ainda mais importantes. A Baía de Guanabara é uma imensa área desaproveitada de recreação e lazer para o próprio habitante do seu entorno (extensas praias de areia, pesca esportiva, esportes náuticos, etc.) ¹º

Há, ainda, os benefícios imensuráveis, que estabelecem na despoluição da baía uma proporção incapaz de ser apreendida por trabalhos tradicionais de valoração econômica: as consequências midiáticas de uma baía limpa; o efeito multiplicador da distribuição de renda gerada ao se injetar dinheiro novo em regiões pouco visitadas; os impactos das dimensões do lazer, sociabilidade, revalorização do ambiente e tradições locais, e da saúde física e mental da população.

Embora perfeitamente possível, parece tratarmos aqui de sonhos de um futuro distante. A construção de uma pressão popular imprescindível para a despoluição passa, sobretudo, pela perspectiva abrangente que o tema deve envolver. Não nos esqueçamos: a revitalização deste grande “território comum” fluminense possibilitaria não só a preservação de um ecossistema ambiental, mas um reencontro da potência do imaginário do Grande Rio consigo mesmo. Contemplar o interior da baía é olhar para dentro, para a própria história da região e, geograficamente, sempre nos remete ao outro lado de suas águas e à circularidade de seus espaços: de Icaraí ao Flamengo, de Magé a São Gonçalo, das ilhas para o continente.



Michel Misse Filho é jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integra o Observatório de Jornalismo Ambiental, ligado ao Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental (CNPq/UFRGS)



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Cláudio Luiz Castro/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] CHAVEZ, R. Água cristalina na Praia de Botafogo é efeito do outono, diz INEA. R7, Rio de Janeiro, 18/05/2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/agua-cristalina-na-praia-de-botafogo-e-efeito-do-outono-diz-inea-19052020 Acesso em: 19/05/2020
[2] GUIMARÃES, C. Vídeo da água transparente na Praia de Botafogo: efeito da quarentena? Veja Rio, Rio de Janeiro, 19/05/2020. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/agua-transparente-praia-botafogo-video/ Acesso em 19/05/2020
[3] BREVES, L. Rio surreal: o momento caribenho da Praia de Botafogo. O Globo, Rio de Janeiro, 19/05/2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/rio-surreal-momento-caribenho-da-praia-de-botafogo-24433854 Acesso em 19/05/2020
[4] OLIVEIRA, L. Poluição das águas marítimas: estragos na fauna e flora do Rio de Janeiro. In: Memórias do Instituto Oswaldo Cruz: v.56. Rio de Janeiro, 1958
[5] NOSSA rede de esgoto é proporcionalmente menor que há um século atrás. O Globo, Rio de Janeiro, 15/09/1959. Geral: 9.
[6] CASOS confirmam: o perigo existe. O Globo, Rio de Janeiro, 08/01/1970. Geral: 13.
[7] ALENCAR, E. Baía de Guanabara: descaso e resistência. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll / Mórula, 2016.
[8] Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/datafiles/estudos/baia-guanabara/Estudo-Completo-Beneficios-do-saneamento-na-Baia-de-Guanabara.pdf Acesso em 07/05/2020
[9] Dados do Anuário Estatístico de 2014 da Secretaria de Estado de Turismo. Disponível em: http://www.turisrio.rj.gov.br/downloads/Anu%C3%A1rio%20Estat%C3%ADstico%202014.pdf Acesso em 07/05/2020
[10] YOUNG, C & MEDEIROS, R. Baía de Guanabara: um olhar econômico. 2017. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/326986425_Baia_de_Guanabara_um_olhar_economico

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O Espírito Santo e o Rio

*Por Eduarda La Rocque

O Espírito Santo tem hoje condição de sair da crise do coronavírus rumo a uma trilha de desenvolvimento sustentável, coisa que o Rio pré-olímpico teve e perdeu. Qual a principal diferença entre os dois Estados, tão semelhantes em oportunidades vinculadas à posição estratégica, capital humano e dotes naturais? O capital cívico, a confiança, a estabilidade jurídica, a transparência, a credibilidade das instituições, a tal governança dos manuais de sustentabilidade. Este alto nível de capital cívico foi atingido através de um trabalho árduo, de toda uma geração de políticos e gestores públicos; e não só eles, foi um movimento de toda a sociedade capixaba, incluindo empresários, movimentos populares e pesquisadores universitários, que conseguiram através de um processo de renovação de cidadania, tirar o Estado da “terra sem lei” em que se encontrava no início deste século. A situação era deplorável, similar infelizmente à do Rio de hoje.

São ainda muitos os desafios do Espírito Santo, principalmente aqueles ligados à diversificação da economia, melhoria da infraestrutura e qualidade de vida dos mais vulneráveis, o enfrentamento à pobreza e aos mais diversos tipos de desigualdades. Mas o fato de ser o único Estado avaliado com nota A pelo Tesouro Nacional desde 2012 e um atual governo comprometido com a responsabilidade fiscal e com a redução das desigualdades sociais e regionais faz com que surja a esperança de um caso de sucesso real de desenvolvimento sustentável e inclusivo no país. Mas como medir o “sucesso” da gestão de um país ou ente subnacional?

Certamente o PIB per capita não serve. Joseph Stiglitz, já antes do vírus, alertava que o PIB é uma ilusão perversa. “O mal-estar social alastra-se, o colapso da Natureza avança e a democracia declina. Se ainda assim o termômetro que afere o ‘sucesso’ das sociedades nos diz que tudo vai bem — então, é preciso trocá-lo por outro”¹.

O PIB per capita não é uma boa métrica para medir o grau de desenvolvimento de um país, muito menos Estado ou cidade. O PIB é muito impactado por atividades relacionadas à indústria extrativa, sem penalizar a desigualdade nem o desgaste do meio ambiente, além de não computar adequadamente a economia criativa. A alternativa proposta por Amartya Sen, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), é muito adequada para ranquear os países ou mesmo municípios, mas não tão boa para avaliar os resultados de política pública num prazo mais curto, pois varáveis como renda média, expectativa de vida e nível de escolaridade demoram muito a reagir. Para avaliar os resultados das políticas públicas lá “na ponta”, ou seja, os impactos reais nos territórios, foi criado por Michael Porter o IPS (índice de progresso social), que aborda aspectos sociais, de direitos e ambientais e hoje é atualizado pela Rede de Progresso Social (por sinal já implantado na cidade do Rio). Um bom ponto de partida para que candidatos à prefeitura se comprometam com a melhora de cada um dos indicadores, em cada uma das 32 regiões de planejamento contempladas pelo estudo.

No Espírito Santo, estamos desenvolvendo o IPES, índice de prosperidade que irá mensurar a melhoria de qualidade de vida dos cidadãos, por região, medida através de uma composição de sete “ativos” da sociedade: econômico, social, ambiental, cívico (que inclui as questões de governança), urbano, cultural e humano, em cada um dos municípios e microrregiões. Aproximar a academia, o governo nas suas diversas esferas, setor privado e sociedade civil num pacto pela prosperidade do Espírito Santo, visando a redução de desigualdades, sociais e regionais.

Integrar as políticas públicas nos territórios de uma forma participativa é o único caminho viável para o desenvolvimento sustentável, que requer um processo de melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, principalmente para os mais vulneráveis, e mantendo o respeito ao meio ambiente e às instituições.

O modelo de desenvolvimento territorial proposto é composto por três etapas. A composição de um conselho de atores envolvidos e comprometidos com o desenvolvimento do território; a pactuação de metas de desenvolvimento holísticas; e, uma matriz de responsabilidades para se alcançar e monitorar as metas. Para dar certo, depende de representatividade dos atores, informação qualificada e empoderamento do conselho. Precisamos de uma meta, um guia; daí a importância dos indicadores econômicos e sociais. São eles que pautam toda a informação, a composição do saber da sociedade e os rumos dos países e entes subnacionais.

Um território pode ser uma favela, um bairro, uma cidade, um país ou uma microrregião do Estado. É este modelo que está sendo elaborado para as dez microrregiões do Espírito Santo, com o projeto de Desenvolvimento Regional Sustentável, que visa ao mesmo tempo o desenvolvimento com justiça social, com a preservação ambiental e a prevenção de crises, através de um plano de longo prazo participativo. Foi o que tentamos fazer, sem sucesso, com a UPP Social e, depois no Pacto do Rio, experiência que conto, como um relato pessoal, no artigo “Democracia e Informação”, do livro Política, nós também sabemos fazer, e que transcrevo em anexo. Podemos aprender muito com os casos de fracasso.

A situação emergencial de violência urbana no Rio de Janeiro, hoje, é um caso que justifica uma concentração de esforços do setor privado, mercado de tecnologia social e do mercado de capitais². Conter a violência é importante; mas a longo prazo, a única solução sustentável é prevenir: investir em projetos que ajudem a consolidar a paz nos territórios pacificados através da inclusão social e produtiva daquelas comunidades, preferencialmente por meio do estímulo ao empreendedorismo local.

Como nos alerta Yunus Muhammad³, se não nos engajarmos em um programa de recuperação econômica pós-coronavírus impulsionado por uma consciência social e ambiental, inevitavelmente tomaremos um caminho muito pior do que a catástrofe do coronavírus.

anexo: a experiência do pacto do rio

Só quando deixei o gabinete da Secretaria de Fazenda do Rio para assumir o programa da prefeitura para o desenvolvimento urbano das favelas pacificadas (UPP Social), é que enxerguei a desigualdade estrutural em que vivemos e a bolha de elite em que estava inserida. Meu relato parte de uma doutora em economia que não estudou ciência política, mas que exerceu por sete anos um papel político de relevância. Vem da experiência prática, também pelos doze anos anteriores em que trabalhei no mercado de capitais, como especialista em gestão de riscos, controle e governança corporativa.

A informação qualificada é o que traz vantagem comparativa ao mercado, seja o financeiro ou o de votos. Há sempre a tentativa de se esconder informação e perdas já existentes para, assim, obter vantagens escusas, burlar controles e, no caso do Estado, esconder a realidade do eleitor. Não temos instrumentos adequados de participação e controle. Foi quando assumi o Instituto Municipal Pereira Passos (IPP) que descobri que nos falta, principalmente, informação qualificada. E o valor que a informação tem para o desenvolvimento sustentável de uma cidade.

A UPP Social, apesar dos nossos dois prêmios internacionais, não obteve o sucesso que se pretendia – o que ajudou a deteriorar a política de pacificação –, por falta de integração, eficiência e avaliação das inúmeras e dispersas políticas sociais, que derivam das enormes disputas políticas em torno desses territórios; o tal mercado de votos. Era uma metodologia teoricamente muito bem desenhada na Secretaria de Direitos Humanos e Assistência Social do Estado, visando um choque de serviços públicos paralelamente à entrada da polícia/UPP. O projeto mostrou-se, no entanto, inviável politicamente, pois pressupunha um articulador político entre as demandas qualificadas das favelas pacificadas e toda a ampla oferta não só do setor público, como da sociedade, àquele novo mercado que surgia.

A grande concentração de ações públicas daria muito poder a quem as realizasse, e o projeto acabou minado, empurrado do Estado para a prefeitura, onde nunca teve força. O prefeito não queria apoiar a política de pacificação porque assim estaria fortalecendo politicamente o secretário de segurança, que já ganhava o apoio da população. E a união de esforços não se encaixava com a estratégia de todos os políticos que ali estavam, que era justamente fatiar aquele novo mercado de votos que se abria. As favelas foram “empoderadas” com o excesso de promessas dispersas e inexequíveis através de “lideranças locais”, que na verdade eram cabos eleitorais dos candidatos e trabalhavam para os políticos, e não para a população, em um projeto de desenvolvimento urbano que financiou, hoje se sabe, boa parte da corrupção do governo estadual e federal e quase nada ficou nas comunidades, além de descrédito, decepção.

A UPP Social, já na prefeitura, tentando integrar as forças, mas sem força política, acabou sendo atacada pelos dois lados. Tanto pelo próprio governo como também pelos moradores das favelas, que não gostaram de ver seu “espaço de fala” invadido por cientistas sociais “representando” a prefeitura. E os cientistas sociais, por outro lado, não queriam nem o sucesso da política de pacificação nem representar a prefeitura, justificadamente nada benquista pelas favelas. Do governo, a UPP Social tinha menos empatia ainda, já que se colocava como defensora dos direitos da favela, e não um mediador entre as duas partes, tal como deveria ser. E os secretários também não ajudavam, empurrando projetos de cima para baixo, sem levar em consideração os bem-elaborados diagnósticos produzidos pela UPP Social. Até que o programa começou a se esgarçar internamente, entre os gestores de campo que coletavam as demandas e a área institucional, que obviamente não conseguia fazê-las acontecer.

Sem força política, a saída foi transformar a UPP Social num programa de geração de informação qualificada e, em torno dela, acordos e parcerias público-privadas participativas, muitas delas com muito sucesso. O IPP participava da “Cúpula das Favelas”, composta por um grupo de lideranças comunitárias e de gestores públicos e privados sob a coordenação do Ministro Reis Velloso, do Fórum Nacional. O grupo publicou vários livros com planos de desenvolvimento para as favelas⁴ e implantou diversos projetos de parcerias público-privadas participativas. Dentre os vários liderados pelo IPP, destaca-se o Agentes de Transformação⁵ – que elaborou uma espécie de senso dos jovens das favelas pacificadas, feito pelos próprios jovens. Todos os projetos visando formar uma base de informação qualificada sobre as favelas e a partir de então um plano participativo de ação para a inclusão social e produtiva delas. Um exemplo claro de informação qualificada era o mapa rápido participativo das favelas, elaborado pela UPP Social, que indicava as condições urbanas, de água, saneamento, coleta de lixo, risco de deslizamento etc., para cada microrregião de cada favela. A partir de então poderia ser feita uma força-tarefa para melhorar as condições, direcionada para os responsáveis na prefeitura, Comlurb, por exemplo, e outros poderes como a estadual Cedae, para resolver as questões, principalmente as das áreas mais vulneráveis.

O mapa, no entanto, nunca chegou a ser usado. Pelo contrário, foi proibido de ser publicado por questões políticas, o que me levou à convicção de que a gestão da informação, essencial para a gestão consciente e sustentável da cidade, não poderia estar nas mãos do governo; deveria ser um órgão independente. Toda essa experiência acabou se transformando no Pacto do Rio, lançado em dezembro de 2014, com o objetivo de construir essa instância de articulação das ações em torno das favelas, que no momento pré-olímpico eram muitas, com muito investimento financeiro, mas muito desintegradas.

O objetivo era retroalimentá-las, fortalecê-las, já que o quadro falimentar que já há muito vemos no Rio já se desenhava para nós. O modo como as ações destruíam umas às outras por descuido, por disputa de territórios, além da corrupção, era de uma enorme ineficiência. A falta de clareza de tudo que estava acontecendo, a falta de transparência, levava a um estado de corrupção generalizada. O objetivo com o Pacto era fazer convergir um movimento de baixo para cima – a partir da vontade da população de participar e melhorar a qualidade dos serviços públicos – com a pressão dos organismos internacionais por mais transparência e melhores políticas públicas e privadas em prol do desenvolvimento sustentável. Foi tarde demais.

Mas esta e tantas outras experiências podem ser usadas para uma recuperação rápida do Cidade Maravilhosa. Com pessoas experientes que aproveitem informação qualificada, estudos acadêmicos, o saber popular, programas de sucesso e os erros cometidos para que retomemos para uma trajetória de desenvolvimento sustentável. Com informação qualificada, transparência, responsabilidade fiscal e social. Um modelo territorial de reurbanização e geração de renda nos nossos morros e periferias. Um projeto amplo e bem desenhado de habitação de interesse social não só nos centros urbanos, mas planejando melhor a ocupação do solo do interior é o melhor caminho para a retomada econômica.



Eduarda La Rocque é economista chefe do Banestes. Foi secretária de fazenda da cidade do Rio e presidente do Instituto Pereira Passos.


* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Antônio Lapa/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] Artigo “Mercado e Democracia” na revista Outras Palavras, 2020.
[2] Eduarda La Rocque, O Mercado de Capitais e as Políticas Públicas, REVISTA RI, n.214, 2016.
[3] Artigo publicado no jornal italiano La Republica no dia 18.04.2020.
[4] ‘Favela é cidade’: fazer acontecer”. In: VELLOSO, J.P.R. (coord.). Cultura, “favela é cidade” e o futuro das nossas cidades. Fórum Nacional / Inae, 2014.
[5] Disponível em https://www.unicef.org/brazil/pt/media_31942.html

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Mudança de Normas Sociais e o Combate à Violência Contra a Mulher no Rio de Janeiro (Parte 1/2)

*Por Maria Oaquim e Renata Ávila

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial da Saúde estima que 1 em cada 3 mulheres ao redor do mundo já sofreu violência física por seu parceiro ou sexual (WHO, 2013). Ademais, em âmbito global, 38% dos assassinatos de mulheres foram cometidos por seus companheiros (WHO, 2013). Apesar de avanços na proteção jurídica e da existência de instituições dedicadas ao combate à violência de gênero, o Brasil ainda apresenta índices elevados de violência contra mulher. Em 2017, 13 mulheres foram assassinadas por dia em nosso país, sendo que 39,3% dos óbitos femininos¹ ocorreram dentro de casa² (Atlas da Violência, 2019). Uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto DataFolha em 2019 apontou que cerca de 27,4% das mulheres brasileiras com mais de 16 anos sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses e que 52% das vítimas não denunciaram o agressor.

A defesa de um combate efetivo à violência contra a mulher vai além de uma questão de saúde pública. Primeiramente, ela é uma questão de Direito Humano, uma vez que atinge a liberdade da mulher de gozar de seus direitos com igualdade em relação aos homens (United Nations, 1993)³. A experiência de violência doméstica também impacta negativamente o desempenho das mulheres no mercado de trabalho, sendo associada a maior desalento no mercado de trabalho, instabilidade de emprego e redução da produtividade (Swanberg, Logan & Macke, 2005; Carvalho e Oliveira 2016). Além disso, as consequências da violência contra as mulheres penalizam a sociedade como um todo: estimativas apontam que seu custo econômico é em ordem de 10% do PIB Brasileiro (Waters, 2004). Também está envolvida uma questão de transmissão intergeracional da violência: homens que experimentaram violência de gênero em seus lares quando crianças têm maior propensão tanto a cometer violência contra mulheres como a perpetrar outras formas de agressão (Peacock and Barker, 2014; Fleming et al., 2013). Um dos mecanismos por trás dessa perpetuação geracional da violência é o processo de aprendizagem observacional, onde crianças podem vir a entender a violência como uma resposta apropriada ao conflito se a presenciam em seus lares (Smith-Marek et al., 2015). Assim, o combate à violência doméstica também está associado ao combate a outras formas de violência.

Quando falamos em violência contra mulher é necessário ter em mente duas dimensões importantes. Uma delas é a característica multifacetada desse fenômeno, ou seja, a violência surge de uma interação de fatores pessoais, situacionais e sócio-culturais (Heise 2011).Outra dimensão relevante é o forte componente interseccional, uma vez que a violência contra mulher não engloba somente uma questão de gênero, mas também racial e de classe. A pobreza e a discriminação são fatores correlacionados com a vitimização e a recorrência da violência, em especial quando consideramos que muitas dessas mulheres não têm alternativas financeiras fora do casamento. Tanto entrevistas domiciliares de vitimização (FBSP, 2019) quanto dados administrativos de homicídios (Atlas da Violência, 2019; Instituto de Segurança Pública, 2019) apontam que as maiores vítimas são mulheres negras. No Estado do Rio de Janeiro, para o ano de 2018, as mulheres negras eram 59,1% das mulheres vítimas de homicídio doloso, 55,0% daquelas que sofreram tentativa de homicídio e 55,8% das vítimas de estupro . Dessa forma, a experiência internacional corrobora que uma abordagem multifacetada, englobando a proteção jurídico-institucional, o empoderamento econômico e a mudança de normas sociais nocivas à igualdade de gênero é desejável para um combate efetivo da violência contra a mulher (Pauluk and Ball, 2010).

A subnotificação de crimes de tal natureza, a falta de uma cultura de sistematização de dados de assistência social e registros de violência contra mulher incompletos são grandes desafios para a formulação de políticas públicas que visem ao combate efetivo dessa forma de violência. Para além disso, falta uma pesquisa domiciliar de abrangência nacional e longitudinal que busque quantificar melhor a vitimização de mulheres no Brasil. Dados do Instituto Igarapé contabilizam 280 iniciativas de prevenção de violência e proteção à mulher em curso no Brasil, das quais, no entanto, 98.57% não apresentam relatórios de avaliação. Essa estatística é altamente preocupante, uma vez que sem a coleta de dados e realização de diagnósticos não é possível fazer avaliações robustas de programas e constatar quais medidas são capazes de gerar resultados positivos. Prejudica-se, assim, a efetividade das intervenções.

Nesse conjunto de artigos, iremos trazer estatísticas de pesquisas domiciliares realizadas em algumas comunidades no Rio de Janeiro que buscaram investigar opiniões e atitudes com relação a papéis de gênero, tolerância e perpetração quanto à violência doméstica. A partir da análise de tais pesquisas, da literatura internacional sobre o tema e dos programas de combate à violência doméstica já implementados no Brasil, buscaremos ressaltar uma lacuna nas políticas públicas voltadas ao tema: mudança de normas sociais que deem suporte à violência de gênero.

A primeira parte do artigo consiste em uma breve revisão de literatura de duas dimensões de políticas públicas de combate à violência contra mulher: o enfrentamento jurídico institucional e medidas de empoderamento econômico. Já na segunda parte iremos investigar mais a fundo a literatura sobre a relação de normas sociais e violência contra a mulher e argumentar porque essa dimensão é relevante no combate à violência na cidade do Rio de Janeiro.

Enfrentamento à violência contra mulher no âmbito jurídico e institucional

Uma importante dimensão do combate à violência doméstica é a proteção jurídico-institucional às vítimas e a punição ao agressor. A Lei Maria da Penha (11.340/2006) foi o principal marco jurídico do combate à violência contra a mulher no Brasil, promulgada após a condenação do Brasil pela Organização dos Estados Americanos no caso de Maria da Penha Fernandes, por omissão e negligência no tratamento da violência conjugal. A lei retirou os casos de violência doméstica da esfera de tratamento dos Juizados Especiais Criminais (Lei no 9.099/1995), que, portanto, deixaram de ser julgados como crimes de menor potencial ofensivo. A LMP não só aumentou a probabilidade de imputação de pena ao agressor como introduziu uma série de medidas protetivas visando prover acolhimento emergencial e assistência à vítima, conforme apontado em Martins, Cerqueira e Matos (2015). Dentre eles, destacam-se a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e a possibilidade de concessão de medidas protetivas de urgência.

A literatura internacional sobre legislação específica contra violência de gênero identifica alguns canais teóricos de atuação sobre a probabilidade de ocorrência de um crime de violência. São eles: aumento do custo para os agressores, maior segurança para que a vítima possa denunciar e aperfeiçoamento dos mecanismos jurisdicionais, potencialmente aumentando a probabilidade de condenação (Ipea 2015).

A legislação específica oferece, além de tratamento mais adequado aos crimes de violência e melhor infraestrutura protetiva para as vítimas, o aumento da probabilidade de denúncia do crime em si. Evidências empíricas mostram que a criação de unidades policiais específicas para atuação sobre a violência contra a mulher e a incorporação de mulheres à força policial dessas unidades aumentam a probabilidade de denúncia desse tipo de crime (Amaral et al 2018; Kavanaugh et al 2017; Iyer et al 2012). Observa-se que, até 2018, todavia, 91.7% dos municípios brasileiros não possuíam uma DEAM, e somente 2,4% têm casa-abrigo para mulheres em situação de violência (IBGE 2019). No estado do Rio de Janeiro, 87% dos municípios não possuem uma Delegacia de Atendimento à Mulher.

A Lei Maria da Penha gerou reduções estatisticamente significativas sobre a taxa de homicídios de mulheres associados à violência de gênero de 2006 a 2011, com efeitos maiores em regiões onde a incidência de violência era maior antes da promulgação da lei (Ipea 2015). Entretanto, a continuidade da eficácia da LMP na redução casos de homicídios de mulheres é incerta, em especial devido ao crescimento de tais crimes desde 2007 (Atlas da Violência, 2019) . Outro fator preocupante é a baixa efetividade dos serviços protetivos nos diversos municípios. A presença de DEAMS, por exemplo, mostra-se mais efetiva para a redução de homicídios perpetrados contra mulheres mais jovens e residentes em capitais e grandes aglomerações urbanas, com efeitos nulos em municípios menores (Perova e Reynolds, 2015). As autoras discutem que tais efeitos diferenciados para esses subgrupos podem dever-se à presença de maiores oportunidade econômicas nos centros urbanos e ao fato de que mulheres mais jovens costumam apresentar opiniões e atitudes quanto a normas de gênero menos conservadoras. Portanto, tal efeito heterogêneo dialoga com a interseção de fatores de combate à violência: proteção jurídico-institucional, oportunidades econômicas e normas sociais mais igualitárias. A fim de apresentar melhor a importância desses outros âmbitos de atuação, vamos discuti-los com maior cuidado nas próximas sessões.

Empoderamento econômico e violência contra a mulher

Uma série de estudos busca relacionar o empoderamento econômico feminino com a violência doméstica. Por um lado, mais recursos econômicos podem fornecer às mulheres uma alternativa de vida economicamente sustentável fora do relacionamento e, assim, aumentar seu poder de barganha dentro da relação (Aizer, 2010). Uma evidência desse canal é mostrado por Aizer (2010): a autora encontra que a redução do diferencial salarial de gênero mostra-se empiricamente associada à diminuição de episódios de violência doméstica que resultam em hospitalização de mulheres nos EUA. No caso brasileiro, dados da PNAD (IBGE 2009, Suplemento de Vitimização) mostram relação estatisticamente negativa entre participação feminina no mercado de trabalho e probabilidade de sofrer violência conjugal (Ipea 2015). Bobonis e outros (2013), ao investigarem o impacto do Oportunidades (programa de transferência de renda condicional similar ao Bolsa Família) nos casos de violência doméstica no México encontraram uma redução de 40% na probabilidade de sofrerem abuso físico.

Por outro lado, o empoderamento econômico feminino pode ameaçar a posição tradicional do homem como provedor familiar primário, potencializando situações de conflito em alguns domicílios (Macmillan e Gartner 1999). O estudo de Bobonis e outros (2003) para o México também encontrou que as beneficiárias do programa são mais propensas a receberem ameaças violentas, mas sem violência física associada. Diferentes métricas de empoderamento econômico revelam que, apesar da independência econômico-financeira feminina estar muitas vezes associada a uma menor incidência da violência de gênero, em diversos contextos essa correlação não é clara ou pode mesmo afetar negativamente as mulheres (Vyas e Watts 2008; Krishnan 2005; Kishor and Johnson 2004). Portanto, as evidências a respeito de programas de empoderamento econômico feminino em redução da violência doméstica são inconclusivas, mostrando que somente a melhora das condições econômicas das mulheres pode ser uma solução limitada para diminuir sua exposição a situações de violência.

Ao mesmo tempo, programas que combinam empoderamento econômico e intervenções específicas em prol da mudança de normas sociais revelam resultados positivos sobre a diminuição da violência de gênero. Pronyk e outros (2006) encontram efeitos positivos da inserção de treinamentos específicos contra a violência de gênero em um programa de crédito cooperativo e prevenção de AIDS implementado na África do Sul, com redução de 55% na probabilidade de ter sofrido violência doméstica em 2 anos. Gupta e outros (2013) avaliam os resultados de um programa de microfinanciamento para mulheres aliado à participação em grupos de discussão sobre gênero, e encontram menor incidência de violência doméstica para mulheres beneficiárias que participaram nas discussões com seus parceiros, comparado às que apenas receberam o benefício econômico. Assim, a evidência empírica sugere a importância, para além do auxílio econômico, da mudança de normas sociais e perspectivas sobre os papéis de gênero em políticas de combate à violência doméstica. No próximo artigo dessa série, vamos investigar mais a fundo essa outra relevante dimensão do enfrentamento à violência contra mulher e debater porque programas direcionados à transformação de opiniões e atitudes com relação aos papéis de gênero podem ser importantes em mitigar a violência em nossa cidade.



Maria Oaquim é membro da Iniciativa RioMais. Mestranda em Economia na PUC-Rio e formada pela mesma universidade. Trabalhou em projetos acadêmicos na área de Economia do Trabalho, Desigualdade de Gênero e Crime e em avaliação de políticas públicas relacionadas à Violência de Gênero.


Renata Ávila é formanda em Economia pela PUC-Rio, com intercâmbio acadêmico na Universidade da Califórnia, Berkeley. Possui experiência profissional em Macroeconomia e como assistente de pesquisa em Economia Política.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Bacia de Campos: Principais Operações/Petrobras

Notas de Rodapé
[1] Essa estatística foi obtida não considerando mortes em locais não reportados. Se considerar esses locais não reportados, a estatística é de 28,5%.
[2] Segundo a literatura internacional, os homicídios ocorridos dentro do âmbito doméstico são uma boa aproximação para feminicídios
[3] https://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/ViolenceAgainstWomen.aspx
[4] Observatório Judicial da Violência contra a Mulher, TJ-RJ. http://www.tjrj.jus.br/web/guest/observatorio-judicial-violencia-mulher/delegacias

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A renda do petróleo e gás e como usá-la: um exercício para o Rio de Janeiro

*Por Marcelo Casagrande

O QUE SÃO ROYALTIES E PARTICIPAÇÃO ESPECIAL?

O Rio de Janeiro é um grande produtor nacional de petróleo e de gás natural associado, o principal estado brasileiro neste quesito. Pode-se destacar os municípios de Maricá, Niterói e a capital fluminense como alguns dos que mais são beneficiados com a renda petrolífera, normalmente transferida pela União, que é por lei a detentora dos recursos explorados em seu território, através de dois caminhos: Royalties e Participação Especial.

Os royalties são remunerações pagas pelo direito à exploração de algum recurso e podem ser aplicados em diversas atividades. Na indústria do entretenimento, por exemplo, royalties podem ser pagos ao autor de uma música para que o conteúdo possa ser usado comercialmente por outros indivíduos. Porém, neste texto os royalties se referem à indústria de petróleo e gás e, portanto, segundo a ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), são “uma remuneração à sociedade pela exploração desses recursos não renováveis”¹. Isso quer dizer que a renda é concedida à União e repassada aos estados e municípios beneficiários para que eles a revertam em investimentos favoráveis à sociedade que compensem os danos causados pela exploração. O cálculo dos royalties de petróleo e gás é feito segundo uma alíquota (que varia de 5% a 15%) incidente sobre o valor gerado por um campo de produção, sendo este valor calculado multiplicando-se as quantidades de produção e os preços de referência de petróleo e gás no mercado.

A participação especial, por sua vez, é uma compensação financeira extraordinária paga trimestralmente pelas empresas concessionárias àqueles que possuem campos de produção de petróleo e gás natural de grandes proporções. A participação é calculada segundo alíquotas progressivas aplicadas sobre a receita líquida da produção trimestral de cada campo e a transferência para a União, estados e municípios beneficiados depende das características do campo (terrestre ou marítimo) e da data referente à sua declaração de comercialidade².

para onde vão estes recursos?

Royalties e Participação Especial formam, portanto, as rendas da produção de óleo e gás que serão estudadas neste texto e cabe agora discutir o que a literatura tem apresentado como melhor forma de se utilizar estes recursos. Segundo determinação da ANP, que segue a ideia inserida na sua definição do conceito de royalties, a aplicação dos recursos deveria dar prioridade a ganhos sociais através de investimentos em educação, saúde, criação de empregos em outros setores e mitigação da degradação ambiental.

No Brasil, por muitos anos, têm se discutido com entusiasmo pelas forças políticas de que maneira essas receitas devem ser distribuídas de forma a beneficiar todos os entes da federação e não apenas aqueles que possuem campos dentro de seus domínios. Esta seria uma forma de distribuição justa para que algumas regiões não obtivessem vantagens desiguais para se desenvolverem em relação a outras, mas diversos estudos publicados demonstraram que os dados de mensuração do desenvolvimento, como renda per capita, educação, saúde e pobreza não apresentaram resultados melhores para os municípios beneficiários quando comparados a não beneficiários³. Uma causa costumeiramente apresentada para justificar a falta de resultados positivos é o destino incorreto dos recursos, pois o que se observa é a aplicação da renda petrolífera em gastos correntes, como nas despesas com pessoal e com a previdência social, em detrimento dos outros destinos apontados como preferenciais. Portanto, este artigo busca discutir qual a melhor forma de aplicar a receita em questão.

É claro que o equilíbrio dos gastos com pessoal e com a previdência é muito importante para a saúde fiscal do município e devem ser buscados os meios para que não falte recursos para estes pagamentos, mas usar ostensivamente a receita do petróleo parece se mostrar um suicídio fiscal. De um lado, temos um gasto constante, determinado pela massa de trabalhadores e aposentados do município, e potencialmente crescente ao longo do tempo. Enquanto isso, do outro lado vemos uma receita extremamente variável – que depende do volume produzido e do preço de referência no mercado mundial, além do câmbio, uma vez que o preço é determinado em dólar. Para agravar mais ainda a situação, podemos enfrentar crises, como a deste ano de 2020 por conta da Covid-19, que afetem (muito) negativamente a produção e o preço do petróleo e, consequentemente, as contas municipais. A fragilidade do câmbio brasileiro frente ao dólar, que está sendo escancarada nesse período de crise, é mais um motivo de preocupação quanto à volatilidade desta receita.

O QUE SÃO FUNDOS SOBERANOS?

A saída que países, estados e municípios ao redor do mundo têm encontrado para a situação de dependência do petróleo é a criação de fundos alimentados pela receita do recurso natural, uma espécie de poupança. Estes fundos costumam receber aportes periódicos e são aplicados para gerar uma renda a ser explorada preferencialmente no longo prazo, em favor das gerações futuras, quando se espera que a exploração dos recursos esteja ameaçada. Se um dia o petróleo vai acabar e não será mais possível gerar receita a partir dele, a ideia é destinar uma parcela do que recebemos para a readaptação necessária no futuro, quando outras atividades deverão ocupar o vácuo deixado pelo óleo.

O maior exemplo de sucesso de um fundo soberano de petróleo no mundo é o da Noruega, país que ganhou grande destaque no mercado mundial dos combustíveis fósseis a partir da década de 1970. Hoje, o GPFG (Government Pension Fund Global), que recebeu o primeiro depósito em 1996 e adotou a estratégia de aplicar seus investimentos ao redor de todo o mundo, como uma forma de diversificação e minimização dos riscos, possui valor de mercado superior a 1 trilhão de dólares. Considerado o maior fundo soberano do planeta, tem um rendimento médio de 6,1% ao ano desde 1998⁴.

Embora esse caso possa servir de inspiração, não se pode comparar a economia e a sociedade norueguesa com a carioca, por inúmeras razões, o que nos força a usar exemplos mais adequados à nossa realidade como referência. E pode-se fazer isso sem mesmo sair do estado: Niterói e Maricá, recentemente, adotando medidas semelhantes ao país europeu, criaram fundos que visam prover as futuras gerações com recursos da atual exploração do petróleo e do gás natural. Esta não é a única função do fundo, que também pode ser utilizado para possibilitar políticas anticíclicas em tempos de turbulência sem comprometer o orçamento público. Com efeito, como noticiado na grande mídia, ambos os municípios se juntaram nesta época de pandemia do novo coronavírus para auxiliar o município vizinho de São Gonçalo na construção de um hospital de campanha. Este exemplo de uso pontual já foi possível mesmo com os fundos ainda recentes, que receberam seus primeiros depósitos há menos de dois anos, o que demonstra o potencial deste tipo de iniciativa.

Mais exemplos são vistos no Brasil, a começar pelo primeiro fundo criado, o de Ilhabela, município do litoral paulista com grande destaque na produção de óleo e gás, que recebe volumosos recursos. Tendo isso em vista, a prefeitura criou em abril de 2018 o Fundo Soberano Municipal, pioneiro nacional. Além disso, o estado do Espírito Santo também criou o seu fundo em 2019.

O que todos estes exemplos de poupadores têm em comum é o significativo poder de gerar receita a partir do recebimento dos royalties e da participação especial, indiscutivelmente maior do que o observado hoje na cidade do Rio de Janeiro. Olhando para os municípios, observa-se o seguinte cenário para o ano de 2018: com a renda do petróleo, Maricá obteve uma arrecadação superior a R$ 1,5 bilhão (73% da receita total do município), Niterói arrecadou R$ 1,3 bilhão (38% do total arrecadado pela prefeitura) e Ilhabela recebeu pouco mais de R$ 782 milhões (correspondendo a 80% do todo). Para o Rio, a arrecadação foi de R$ 338 milhões, o que representa apenas 1,2% da receita total. As estatísticas acima são referentes ao apresentado nos relatórios da ANP e do Siconfi (Tesouro Nacional)⁵.

A partir de uma análise do que se tem noticiado sobre os fundos dos municípios de referência, conclui-se que os investimentos aplicados têm seguido padrões diferentes em cada situação. Para Maricá, por exemplo, a lei que previa aportes de 5% da receita dos royalties no início da poupança já foi modificada para que sejam depositados 10% dos royalties mensalmente e 10% da participação especial a cada trimestre. Em janeiro de 2020, com pouco mais de um ano de depósitos e rendimentos, o montante do fundo passava de R$ 274 milhões e a previsão da prefeitura é de que ele chegue aos R$ 2 bilhões em oito anos⁶.

Em Niterói, a estratégia também é destinar 10% do que se arrecada, mas apenas com a participação especial. Em março de 2020 o fundo chegou a R$ 272 milhões após os aportes realizados anteriormente e a previsão da prefeitura é de que em vinte anos atinja-se a marca de mais de R$ 2,7 bilhões poupados⁷.

Por último, Ilhabela formulou o seu fundo com o depósito de 15% do arrecadado com royalties em 2018. Essa porcentagem cresce paulatinamente até atingir 55% em 2022, quando espera-se que isso represente R$ 1 bilhão ao ano. Ainda existe uma emenda na lei que diz que o município também deve depositar 50% do excedente que ultrapassar a previsão anual, caso ele ocorra⁸. Todas as prefeituras garantem que as iniciativas têm sido feitas com o planejamento necessário e que recursos não ficarão escassos para outras áreas.

um fundo para o rio?

A cidade do Rio de Janeiro, que não possui tal fundo soberano, é receptora de ambas as transferências de royalties e participação especial. Isso a coloca numa posição potencialmente favorável ao bom uso destes recursos em prol da sociedade e da boa administração pública.

Antes de mais nada, é importante frisar que esta não chega perto de ser a fonte de receita mais expressiva do município, o que pode ser um bom sinal, uma vez que sinaliza uma dependência muito menor dos recursos naturais em relação aos outros. A renda do petróleo representou sempre menos de 2% da receita total nos últimos anos, mesmo levando em conta o grande volume gerado, com uma média próxima a R$ 15,7 milhões por mês em royalties e R$ 41,8 milhões por trimestre em participação especial em 2019 (ANP).

Com o decorrer da crise do novo coronavírus e com o entendimento mais amplo do que ela representa para o setor do petróleo, porém, é possível argumentar que não estamos no momento mais propício para iniciar o fundo. É de fato previsível que toda a indústria de óleo e gás sofra perdas ainda imensuráveis como efeito da crise, que vem afetando tanto a produção quanto o preço – vide as recentes baixas históricas do WTI e do Brent. Segundo o Secretário da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro, em entrevista concedida à Reuters publicada no dia 22 de abril, o rombo nas contas do estado só com a diminuição dos royalties será de mais de R$ 4 bilhões⁹. Essa situação será igualmente prejudicial ao município.

Se ele já existisse, a poupança poderia cumprir muito bem a sua função de auxiliar políticas anticíclicas e emergenciais. O exemplo do hospital de campanha em São Gonçalo, com o custo de R$ 90 milhões financiado pelas prefeituras de Maricá e Niterói com recursos do petróleo, se encaixa muito bem nessa questão¹º.

Com o intuito de realizar um exercício retroativo, seria um pouco difícil precisar um momento único para a iniciativa da prefeitura de criar um fundo soberano, visto que as discussões já acontecem ao redor do mundo há décadas. Porém, considerando as conhecidas limitações governamentais no Brasil e os excessivos gastos em grandes eventos recentes no país – e, mais ainda, na cidade – ancorados pela renda petrolífera, tomemos como referência apenas as datas dos casos nacionais.

O primeiro cenário hipotético é o mais ousado, pois considera o início do mandato do atual prefeito Marcelo Crivella, que poderia ter começado a captar recursos para o fundo em 2017 caso esta fosse uma das pautas da sua candidatura. O cenário 2 considera o início pioneiro de Ilhabela em 2018. Finalmente, no cenário 3 temos um fundo com início somente em 2019, já depois de observado o movimento dos outros municípios.

Considerando que o Rio possui uma receita muito menos dependente da exploração de petróleo e gás natural do que os municípios de referência, podemos estimar porcentagens de cálculo do depósito bem maiores em comparação com as outras cidades. Então, para as projeções, foram consideradas porcentagens de 10%, 20% e 50% – apenas como orientadoras – incidentes sobre os royalties e as participações especiais recebidos. Assim, ainda se deixa uma margem bondosa da receita para ser usada com outros fins e não se compromete as contas da prefeitura. Como rendimento conservador, foi considerada a taxa Selic vigente na época de cada suposto depósito. A tabela a seguir resume as projeções de cada cenário.

TABELA 1 – Rio de Janeiro: Exercício retroativo (em R$ milhões)

Fonte: Elaboração própria (a partir de dados de arrecadação da ANP)

Como se pode notar a partir das projeções, o Rio teria potencial para já ter um fundo com centenas de milhões de reais poupados. Pensando no curto prazo, esse montante certamente seria um alívio considerável no auxílio a políticas de combate à crise do coronavírus. No longo prazo, com uma capacidade de investimento cada vez maior, destinos mais adequados para os recursos do petróleo do que os que se têm observado atualmente poderiam ser idealizados. Sabe-se da carência de assistência social que existe na cidade, que pode ser atenuada no futuro com uma política consciente. Maricá, por exemplo, informa que o programa já existente de Renda Básica da Cidadania seguirá contando com financiamento a partir do seu fundo soberano.

Conclusão

A ANP, em seu site oficial, disponibiliza previsões de arrecadação de royalties e participação especial para os beneficiários nos próximos anos. Seria muito interessante estudar estes dados e com eles formular projeções futuras para se ter uma ideia mais real do potencial de um fundo soberano carioca. Porém, visto que estas previsões foram realizadas antes de todo o terremoto econômico de 2020, elas tornaram-se pouco confiáveis. O baque na indústria será grande e ainda imensurável e, com isso, o foco deste texto foi a análise retroativa dos dados.

Novamente considerando o manuseio dos recursos, podemos olhar para os nossos vizinhos. Na gestão da atual crise, Maricá, Niterói e Ilhabela anunciaram planos financiados por seus fundos para auxiliar seus cidadãos, não só com a construção de estruturas de assistência médica, mas também com provimento de renda e facilitação de crédito. Analogamente, é de se imaginar que o enfrentamento na capital fluminense seria facilitado caso providências tivessem sido tomadas com antecedência.

Ganhos e compensações sociais pela exploração dos recursos energéticos devem ser a prioridade no uso dos recursos, em uma estratégia de longo prazo. No momento, por mais que presenciemos tempos extraordinários de crise sanitária e econômica, é importante que as medidas exemplares de destinação da receita do petróleo estejam presentes nas discussões dos formuladores de políticas cariocas. Hoje, o que acontece no Rio é a priorização equivocada nos gastos correntes com a previdência, que certamente deve ser tratada com zelo, mas com um plano que a torne sustentável no futuro. Da mesma forma, o uso desenfreado desta receita volátil em programas de desenvolvimento social no curto prazo deve ser rechaçado em prol da longevidade destes programas.

Por fim, as definições das taxas e do modelo do fundo em geral – somente sobre royalties, somente sobre participação especial ou uma combinação dos dois – assim como a sua estratégia de maximização do rendimento, demandam um vasto estudo e muita negociação política. O objetivo inicial deste artigo não é formular uma proposta de imediato, mas inserir esta questão importante no debate público do Rio de Janeiro. E como espera-se que a cidade continue a ganhar volumosos recursos petrolíferos por um bom tempo, ainda não é tarde demais para isso.



Marcelo Casagrande é graduando em Economia pela UFRJ e com intercâmbio acadêmico na Universidade de Copenhague. Foca suas pesquisas acadêmicas na área de Economia da Energia e possui experiência profissional no setor público.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Bacia de Campos: Principais Operações/Petrobras

Notas de Rodapé
[1] Ver < http://www.anp.gov.br/royalties-e-outras-participacoes/royalties > acessado em 25/04/2020
[2] Ver < http://www.anp.gov.br/royalties-e-outras-participacoes/participacao-especial > acessado em 25/04/2020
[3] Postali, Fernando; Nishijima, Marislei. “Distribuição das Rendas do Petróleo e Indicadores de Desenvolvimento Municipal no Brasil nos Anos 2000” (2011); Nogueira, Lauro; Menezes, Tatiana. “Os Impactos dos Royalties do Petróleo e Gás Natural Sobre o PIB per capita, Índices de Pobreza e Desigualdades” (2012).
[4] Ver < https://www.nbim.no/ > acessado em 25/04/2020
[5] Ver < https://siconfi.tesouro.gov.br/siconfi/pages/public/declaracao/declaracao_list.jsf > acessado em 25/04/2020
[6] Ver < https://www.marica.rj.gov.br/2020/01/17/fundo-soberano-de-marica-atinge-r-274-milhoes-em-mais-de-um-ano/ > acessado em 25/04/2020
[7] Ver < https://fazenda.niteroi.rj.gov.br/site/com-novo-deposito-poupanca-de-royalties-de-niteroi-ultrapassa-r-270-milhoes/ > acessado em 25/04/2020
[8] Ver < https://epbr.com.br/camara-de-ilhabela-aprova-1o-fundo-soberano-para-royalties-do-brasil/> acessado em 25/04/2020
[9] Ver < https://br.reuters.com/article/businessNews/idBRKCN22438U-OBRBS?utm_source=newsletters+epbr&utm_campaign=f3d183886b-transicao_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_5931171aac-f3d183886b-196819841 > acessado em 25/04/2020
[10] Ver < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/06/com-mais-royalties-do-petroleo-niteroi-e-marica-se-unem-para-ajudar-sao-goncalo-a-construir-hospital-de-campanha-para-pacientes-da-covid-19.ghtml > acessado em 25/04/2020

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É possível implantar o “Governo Aberto” na cidade do Rio de Janeiro?

*Por Tatiana Bastos

Antes de enfrentar a questão, precisamos entender o que é “Governo Aberto” e quais os benefícios da adoção desse conceito. Segundo a Open Government Partnership – OGP¹, o termo “Governo Aberto” é uma nova visão da administração pública, uma vez que se define sob quatro princípios: transparência; prestação de contas e responsabilização; participação cidadão; e tecnologia e inovação.

Para cumprir com os requisitos de transparência, as informações sobre as atividades de governo deverão ser abertas, compreensíveis, tempestivas, livremente acessíveis e cumprindo ao padrão básico de dados abertos.
Quanto à prestação de contas e responsabilização do agente (accountability), o ente deverá possui regras e mecanismos que estabeleçam procedimentos de responsabilização e monitoramento eficientes.

A participação cidadã é medida, segundo a Controladoria-Geral da União², pela ação do governo de mobilizar a sociedade para debater, colaborar e propor contribuições que levem a um governo mais efetivo e responsivo.

Por fim, o princípio de tecnologia e inovação decorre do reconhecimento pelo governo da importância das novas tecnologias no fomento à inovação e da necessidade de ampliar a capacidade da sociedade de utilizá-las.

Para fazer parte da Open Government Partnership – OGP³ e implantar o conceito de Governo Aberto, os países participantes devem endossar os quatro princípios acima referidos e apresentar um Plano de Ação Nacional, comprometendo-se a adotar medidas concretas para o fortalecimento da transparência das informações e atos governamentais, combate à corrupção, fomento à participação cidadã, gestão dos recursos públicos, integridade nos setores público e privado, entre outros objetivos.

Desde a sua fundação em 2011, a OGP está presente em 78 países e 20 localidades, equivalentes a cidades, que trabalham com a sociedade civil na implantação do Governo Aberto. A cada dois anos, cada membro define um plano de ação criado necessariamente em conjunto com a sociedade civil e estabelece metas concretas para o aumento da transparência, prestação de contas e participação da sociedade no governo.

No Brasil, apenas dois entes federativos implantaram políticas de Governo Aberto, conforme definido pela OGP. A União implantou a Política Nacional de Governo Aberto através do decreto de 15 de setembro de 2011 e está no acompanhamento dos compromissos do 4º Plano de Ação. Já a cidade de São Paulo implantou a São Paulo Aberta através do Decreto municipal nº 54.794/2014 e está no acompanhamento dos compromissos do 2º Plano de Ação.

O 4º Plano de Ação da União, por exemplo, enfrenta temas como “transparência fundiária”, “transparência no processo legislativo”, “inovação e Governo Aberto na ciência”. Um ponto importante na metodologia da OGP é a base internacional do acompanhamento das metas e a participação permanente da sociedade, que, frequentemente, impulsionam o cumprimento local de compromissos de maior desgaste político.

E A CIDADE DO RIO DE JANEIRO?

O ponto central para o início da implantação do Governo Aberto é a adesão do poder executivo aos princípios da OGP. Cabe ao chefe do poder executivo avaliar se é possível ou até mesmo interessante ao ente federativo o fortalecimento da transparência das informações e atos governamentais, o combate à corrupção, o fomento à participação cidadã, a gestão dos recursos públicos, a integridade nos setores público e privado, dentre outros temas.

análise da situação atual do rio

Como uma forma de contribuir para a avaliação e implantação do Governo Aberto na cidade do Rio de Janeiro, passaremos a analisar algumas iniciativas já implantadas na Cidade Maravilhosa, com foco nos quatro princípios da OGP: (1) transparência; (2) prestação de Contas e Responsabilização; (3) participação cidadão; e (4) tecnologia e inovação.
No que tange à transparência de receitas e despesas em tempo real do executivo, o portal contas.rio⁴ marca um golaço. Pela plataforma, é possível pesquisar por “favorecido” (razão social ou CNPJ), “órgão”, “programa de governo”, “fundamento de despesa”, “ objeto”, dentre outras formas, tudo atualizado com dados do dia anterior e disponível em dados abertos.

Em tempos de COVID-19, a Controladoria-Geral do Município disponibilizou, em um curto espaço de tempo, um painel em “Power BI” para o acompanhamento mais atrativo e visual das compras emergenciais. Mas, antes, já disponibilizada essa ferramenta para visualização das despesas com “diárias” e “despesas gerais”.

Como proposta de melhoria à transparência ativa, temos três pontos importantíssimos que precisam ser urgentemente observados: o primeiro é a disponibilização dos termos e contratos jurídicos na íntegra, sem necessidade de requisição e cumprindo o que determina a Lei de Acesso à Informação; o segundo é a melhoria do detalhamento do objeto dos contratos, uma vez que a falta de padronização é um grande limitador de acompanhamento da sociedade; e o terceiro é a necessidade de utilização de uma linguagem mais acessível e atrativa ao público em geral.

No que concerne à prestação de contas e responsabilização, há um abismo de informação tanto no que se refere à prestação de contas, como no que se refere à responsabilização dos agentes. A prefeitura do Rio de Janeiro, através do decreto 45.385/18, instituiu o Sistema de Integridade Pública Responsável e Transparente – Integridade Carioca e definiu onze eixos temáticos de atuação de grande envergadura. Infelizmente, não é possível identificar sua aplicação na prática de todos os órgãos e entidades municipais.

Em análise das informações no site oficial da prefeitura, observamos que nenhuma das secretarias disponibiliza a prestação de contas anual ou preenche integralmente aos requisitos determinados pelo Sistema Integridade Carioca. Além disso, muitas sequer cumprem com a obrigação de publicar a carta de serviços, conforme determina a Lei 13.460/17. Ou seja, não é possível acompanhar as metas e prioridades estabelecidas nos normativos orçamentários (Plano Plurianual – PPA; Lei de Diretrizes Orçamentárias –LDO e Lei de Orçamentária Anual – LOA) de todas as secretarias, uma vez que os resultados não estão disponíveis.

Por exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro estabeleceu como meta para o ano de 2019 a implantação de prontuário eletrônico de fácil manuseio, integrado e padronizado em 68% da Rede de Saúde⁵. Já para o ano de 2020, a meta é chegar a 100% da Rede⁶. A integração do prontuário eletrônico permitirá um acompanhamento do paciente de forma mais eficiente, uma vez que o histórico de tratamento e exames estarão disponíveis ao profissional de saúde do SUS, da mesma forma que trará também um fortalecimento de proteção desses dados. A meta foi atingida em 2019? Não sabemos. Quando não há transparência no atingimento ou não das metas estabelecidas, não é possível cobrar a efetividade do planejamento.

No que se refere à responsabilização do agente, não há dados disponíveis quanto aos inquéritos, sindicância ou ações das corregedorias. Segundo o Sistema Integrado de Codificacão Institucional – SICI⁷ da prefeitura do Rio, há apenas quatro corregedorias implantadas: uma na guarda municipal; uma na Procuradoria-Geral do Município (PGM); uma na Controladoria-Geral do Município (CGM); e uma na Secretaria de Transportes. Se há punição de agentes públicos em qualquer dos níveis, não há como acompanhar. A sensação de impunidade pode ser tão nefasta quanto a própria corrupção.

Em relação à tecnologia e informação, a prefeitura do Rio de Janeiro possui diversos Sistemas Internos de controle de maior ou menor grau de interação. Nos últimos anos, houve um grande investimento na simplificação de licenciamentos de serviços e registro de solicitações pelo cidadão. Apesar desses esforços, é possível afirmar que grande parte da estrutura do executivo ainda trabalha de forma analógica, seja por ausência do processo eletrônico, seja por ausência de reformulação de normativos que exigem a presença física do cidadão.

Especificamente em relação ao processo eletrônico, talvez esse seja um dos maiores entraves na eficiência da administração. Não se trata de digitalizar papel de processo administrativo, mas de realizar gestão dos dados inseridos. Uma vez que a eficiência da inteligência artificial ou cruzamento de banco de dados necessita de informação na forma digital.

Por fim, no nosso ponto de vista, a participação cidadã na cidade do Rio de Janeiro é episódica e não uma política pública estimulada. Temos exemplos na administração de sua valorização, como na Controladoria-Geral do Município ou na Secretaria de Cultura, mas certamente não é a regra. Um exemplo episódico foi a construção do planejamento estratégico da cidade do Rio de Janeiro (2017/2020), que contou com reuniões abertas e recebimento de contribuições on line. Dessa experiência, só resta a lembrança. Não temos notícias sobre o acompanhamento das metas e nem dos resultados.

Conclusão

Como visto, haverá um grande esforço da cidade do Rio de Janeiro para a implantação do Governo Aberto. Entretanto, sair da zona de conforto analógica e fechada na própria administração é uma oportunidade para desenvolver uma gestão mais eficiente e democrática.

Apenas a título de reforço argumentativo, desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis integra o objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS nº 16) da Organização das Nações Unidas (ONU), assim como garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis.

Por todos os benefícios trazidos pela implantação do Governo Aberto, defendemos que os candidatos a prefeito da cidade do Rio de Janeiro devem enfrentar o tema e se comprometer efetivamente (ou não, mas de forma declarada) com o objetivo de tornar a administração pública municipal mais transparente, participativa, responsiva, tecnológica e inovadora.

Sendo o compromisso do chefe do executivo certamente o primeiro passo necessário para a implantação da metodologia para o Governo Aberto na cidade carioca.



Tatiana Bastos é advogada e presidente do Instituto de Direito Coletivo – IDC.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Agence Olloweb/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] Open Government Partnership – OGP é uma entidade não governamental, formada por representantes de governos e da sociedade com o objetivo de promover uma governança pública responsável, responsiva e inclusiva.
[2] Ver < https://governoaberto.cgu.gov.br/governo-aberto-no-brasil/o-que-e-governo-aberto> Acessado em 11/04/2020.
[3] Ver < https://www.opengovpartnership.org/about/> Acessado em 11/04/2020.
[4] Ver <http://www.rio.rj.gov.br/web/contasrio> Acessado em 12/04/2020.
[5] Ver <http://www.camara.rj.gov.br/controle_atividade_parlamentar.php?m1=legislacao&m2=leg_municipal&m3=leiord&url=http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/50ad008247b8f030032579ea0073d588/a2c82f8197a01f74832582d4005aa336?OpenDocument> Acessado em 12/04/2020.
[6] Ver <http://www.camara.rj.gov.br/controle_atividade_parlamentar.php?m1=legislacao&m2=leg_municipal&m3=leiord&url=http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/7cb7d306c2b748cb0325796000610ad8/c517254d3ea4c2ba83258440006dad41?OpenDocument> Acessado em 12/04/2020.
[7] Ver < http://sici.rio.rj.gov.br/PAG/principal.aspx>. Acessado em 12/04/2020.

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O Rio Invisível: Pessoas em situação de rua e o Programa Habitação Primeiro (Parte 2/2)

*Por Ana Luiza Pessanha e Larissa Montel

Segundo o Decreto nº 7.053, de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua, este grupo é definido como:

“grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”

Com esta definição ampla, muito se é debatido sobre a quantidade de pessoas em situação de rua hoje no Brasil. Não existe um censo amplo que dê números concretos sobre essa parcela da população. As estimativas existentes apontam para mais de 100 mil pessoas nessa situação no país em 2016, enquanto levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro indica que para o município esse número correspondia a 15 mil pessoas, inferior apenas ao da cidade de São Paulo. Com o número de desempregados se mantendo acima de 11 milhões desde 2016, além de um cenário geral de precarização da vida, é perceptível o aumento daqueles que fazem da calçada um abrigo.

A população em situação de rua enfrenta uma série de desafios para além do desemprego, como a violência, negação de acesso a espaços, pertences furtados ou retirados à força por agentes públicos, saúde mental fragilizada e políticas restritivas em relação ao uso de álcool e drogas. As políticas públicas implementadas até o momento assumem em sua maioria um viés moralista e condenatório da situação de rua, não trabalhando as raízes do problema.

Os principais fatores de permanência na rua são a dependência química, uma falsa sensação de liberdade, questões de saúde mental (depressão, baixa autoestima, transtornos decorrentes do uso prolongado de álcool e outras drogas) e a falta de oportunidades de moradia e emprego. A maior parte das políticas públicas adotadas até o momento se mostram ineficazes por não levarem a globalidade e interseccionalidade desses fatores em conta. Os abrigos públicos e as casas terapêuticas trabalham com uma abordagem da abstinência para tratamento de dependência química, além das rígidas regras de convivência (horário para acordar, comer, dormir, etc). As políticas públicas de redução de danos, com implementação dos CAPS-AD e Consultórios na Rua focados em redução de danos têm tido um efeito positivo no tratamento da população em situação de rua dependente química.

O maior obstáculo se encontra nas políticas de moradia. Além de um direito humano, a casa é um elemento estabilizador, que abre espaço para que os demais fatores de ida e permanência nas ruas possa ser trabalhado. Hoje, as políticas de reinserção social para população em situação de rua adotam um modelo etapista, onde a casa seria a última conquista, o “prêmio final” após uma série de desafios vencidos. Essas políticas têm se mostrado ineficientes, porque as demais etapas trabalham em uma abordagem limitada, como apresentado acima.

Nesse contexto, surgiu o Programa Housing First (Habitação Primeiro, em português), um modelo focado em moradias individualizadas e serviços de suporte para a população em situação de rua. Seus resultados são comprovadamente eficientes nos países onde é política pública, tais como Espanha, Canadá, EUA, entre outros. Neste modelo, a moradia se torna um ponto de partida, e não o destino final. Seus elementos chave são: 1. O oferecimento de moradia em primeiro lugar e sem tempo determinado; 2. Moradias individualizadas e com o atendido fazendo parte do processo de escolha; 3. Variedade de serviços disponíveis (mas não obrigatórios) para aumentar o bem-estar individual; 4. Equipe de apoio para acompanhar a pessoa em sua reinserção; 5. Foco na autonomia do indivíduo.

O Projeto RUAS é uma ONG carioca que atua com o objetivo de demolir barreiras e gerar oportunidades para todos em situação de rua desde 2014. Seu fundador, Murillo Sabino, conheceu o Housing First em 2016, após passar um mês em imersão na ONG reStart, em Kansas City, como um resultado do prêmio YLAI (Young Leaders of the Americas Initiative). Nos últimos três anos, a organização tem investido seu tempo, equipe e recursos em aprender mais sobre o modelo e aplicá-lo no contexto brasileiro. Já foram 4 pilotos, 1 intercâmbio para a Espanha, diversas participações em eventos e muito estudo para a implementação.

O maior caso de sucesso hoje é o de Vera, que participou do Housing First – aqui adaptado para Habitação Primeiro – por meio de uma campanha de financiamento coletivo, “uma casa para Vera”. Após 2 anos, Vera permanece em sua casa, investindo em sua educação e trabalho. Nos últimos anos, o número de avaliações de impacto do programa Housing First tem aumentando de maneira relevante, principalmente nos EUA. Um dos maiores centros de pesquisa envolvidos em avaliações de políticas públicas, o JPAL, publicou recentemente uma síntese dos resultados de quarenta avaliações rigorosas de dezoito programas distintos relacionados à prevenção e redução de desabrigados na América do Norte. As principais evidências encontradas foram:

  1. Efeitos positivos de intervenções que fornecem variedade de serviços como assistência financeira, aconselhamento e apoio legal nas famílias com risco de perder suas casas, embora ainda seja necessário pesquisas mais profundas a respeito de melhor focalização.
  2. A representação legal de inquilinos que enfrentam despejo é promissora para melhorar os resultados relacionados aos tribunais e reduzir despejos, embora sejam necessárias mais pesquisas sobre quais tipos de táticas e programas legais são eficazes.
  3. Assistência financeira habitacional permanente aumenta a estabilidade da moradia para indivíduos com doença mental grave e para veteranos que enfrentaram desabrigo. Em relação a outros grupos de pessoas, as evidências ainda não limitadas e inconclusivas.
  4. Embora a recolocação habitacional rápida seja uma solução potencialmente custo-efetiva para fornecer acesso rápido à habitação, as evidências a respeito do impacto de tais políticas na estabilidade habitacional de longo prazo ainda são limitadas e inconclusivas.
  5. A assistência habitacional subsidiada a longo prazo, na forma de vouchers de moradia, ajuda as famílias de baixa renda a evitar a falta de moradia e a permanecerem estáveis.

Apesar de alguns resultados positivos apontados pelo estudo acima, pesquisas adicionais sobre a eficácia de outras estratégias para reduzir a falta de moradia ainda são necessárias, uma vez que há lacunas na literatura de avaliações de programas de prevenção ou assistência à população em situação de rua. Uma outra avaliação do Housing First está atualmente em andamento na cidade de Santa Clara, Califórnia.  Embora tenha uma das maiores rendas médias dos EUA, o município também possui a nona maior população em situação de rua do país e a maior população de pessoas que sofrem de falta de moradia que não ficam em abrigos. As barreiras enfrentadas pelos desabrigados na obtenção e manutenção de moradias têm se tornado mais difíceis, uma vez que as taxas de aluguel aumentaram em mais de 50% desde 2011.

Considerando tal cenário, está sendo implementado um programa de realojamento rápido, cujo critério de elegibilidade consiste em adultos solteiros que tenham pontuação intermediária em uma avaliação de vulnerabilidade. Após selecionados os participantes (chamado grupo de tratamento), a instituição responsável pela avaliação irá oferecer um subsídio progressivo de assistência de aluguel, a fim de facilitar a transição de cada pessoa de volta à habitação. Os participantes de recolocação rápida em geral serão alojados em 60 dias e essa assistência pode durar até dois anos. O programa custa cerca de US$ 15.000 ao ano por beneficiário, incluindo serviços de suporte e assistência de aluguel. O grupo de comparação (não tratados), por sua vez, receberão cuidados usuais, consistindo em abrigos de emergência, passes de ônibus, unidades móveis médicas e encaminhamentos para organizações comunitárias que fornecem programas de emprego, educação e bem-estar.

Os pesquisadores examinarão os dados do município quanto ao impacto do programa em quatro tipos de resultados: estabilidade da habitação, saúde, crime e benefícios públicos. Os indicadores usados ​​para medir a estabilidade da moradia incluirão a taxa de uso do serviço para pessoas em situação de rua, entrada e duração em abrigos, existência e permanência de um endereço formal e excesso de mudanças de moradia. Os indicadores de saúde incluirão qualquer hospitalização, além de consultas ambulatoriais e psiquiátricas. Os indicadores para os resultados do crime incluirão o número e o tipo de prisões e o número de dias passados ​​na prisão. Por fim, os indicadores de uso de benefícios públicos incluirão o recebimento de qualquer tipo de assistência pública e o total gasto em cada benefício.

Embora seja de extrema importância que os formuladores de políticas públicas acompanhem de perto essas avaliações de impacto mundo afora, é preciso ter cuidado com a chamada validade externa dos estudos, isto é, a capacidade que o pesquisador tem de generalizar os resultados de uma intervenção para outros contextos não necessariamente similares.

O déficit habitacional é um problema estrutural das sociedades atuais. Podemos encontrar pessoas vivendo nas ruas em praticamente todos os países do mundo. Por isso, não existem soluções simples ou caminhos únicos para resolver essa questão. Além das políticas de moradia, a existência de ações que trabalhem o cuidado do indivíduo de forma integral possui muitos benefícios. Caminhando ao lado das políticas de assistência social e saúde, projetos sociais e instituições do terceiro setor têm mostrado um impacto positivo na reinserção social da população em situação de rua.

O Projeto RUAS atua com atividades semanais de conexão da população em situação de rua e residentes dos bairros em seu entorno, por meio de rodas de conversa em praças públicas. Em suas ações, busca trabalhar em três níveis para gerar oportunidades a este público. Em uma esfera mais individual, atua no fortalecimento da autoestima e autonomia da população em situação de rua, por meio de atividades de informação e estímulo, conectando-os aos serviços existentes e promovendo espaços de escuta. Em uma esfera coletiva, proporciona um impacto nos residentes que participam como voluntários das atividades, quebrando estereótipos ligados à situação de rua, trazendo um novo olhar sobre a questão. Por fim, em um espaço mais estrutural, busca incidir na construção de políticas públicas efetivas para este público, participando de fóruns e colegiados de debate e construção política.

A interseção entre políticas paliativas e estruturais é fundamental para o desenho de uma política pública eficaz na redução do número de pessoas em situação de rua, tanto no curto como no longo prazo. Dessa forma, como próximo passo dessa série de textos, iremos analisar a evolução do orçamento da cidade do Rio dedicado a políticas para essa população e os tipos de medidas implementadas pelas administrações recentes. A partir desse diagnóstico, podemos avaliar os acertos e erros de políticas passadas e pensar novas formas de atuação, utilizando orçamento público e parcerias público-privadas. Sempre há espaço para pensarmos em políticas mais eficazes e eficientes, que considerem as diversas óticas desse problema social.



Ana Luiza Pessanha é membro da Iniciativa RioMais. Economista pela UFRJ com foco em Pobreza e Desigualdade, é criadora e coordenadora do Núcleo Executivo de Políticas Públicas do Movimento Acredito na cidade do Rio de Janeiro.


Larissa Montel é graduada em Relações Internacionais pela UNESP. Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ. Gestora Estratégica do Projeto RUAS. É também parte da coordenação do Fórum Permanente sobre população adulta em situação de rua do Rio de Janeiro.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Jon Tyson/Unsplash

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O Rio Invisível: Evolução dos indicadores de pobreza extrema e pessoas em situação de rua (Parte 1/2)

*Por Ana Luiza Pessanha e Larissa Montel

Em períodos de crise econômica, um dos primeiros efeitos a ser percebido pela população é o aumento do número de conhecidos desempregados e do número de pessoas em situação de rua nos lugares onde frequenta. Se você é carioca e circula pelas ruas da cidade, então certamente tem notado que nos últimos anos a criatividade das pessoas que estão em busca de fontes de renda se tornou cenário comum no cotidiano. Tem cantores de rap, vendedores dos mais inusitados utensílios, dançarinos fantasiados de personagens da Marvel e declamadores de poesia. Todos em uma tentativa honesta de conseguir alguns trocados. Curiosamente, as pessoas mais vistas pela população são as mais invisíveis para o Estado.

Não obstante observações pessoais possam ser precursoras de boas ideias, quando pensamos em política pública a primeira etapa do processo deve constituir de um diagnóstico correto do problema a ser enfrentado. Nesse sentido, o objetivo desse texto é apresentar ao leitor carioca a evolução dos dados a respeito de pessoas em situação de pobreza extrema e em situação de rua, respectivamente. Posteriormente, faremos uma breve revisão preliminar da literatura a respeito de possíveis intervenções a serem consideradas pelos formuladores de políticas públicas, respeitando diagnósticos locais do município do Rio, restrições fiscais e objetivos sociais.

Em relação aos dados, iremos comparar a evolução do número de domicílios em situação de pobreza a partir de duas bases de dados: Microdados do Cadastro Único, realizado pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) e a PNAD Contínua anual, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma das principais diferenças entre as duas bases corresponde ao tempo em que o órgão executor acompanha a mesma família. No primeiro caso, a família que possui renda familiar por pessoa até metade de um salário mínimo é acompanhada por tempo indeterminado, desde que mantenha seu cadastro ativo. Este cadastro constitui pré-requisito para se tornar beneficiário de alguns programas sociais como Bolsa Família, PRONATEC, Carteira do Idoso e outros. No caso da PNAD Contínua, o IBGE acompanha o mesmo domicílio por apenas cinco trimestres e não possui nenhuma vinculação com programas de governo, tendo como único objetivo a divulgação de estatísticas robustas a respeito de variáveis como demografia, mercado de trabalho e educação.

O mapa 1 abaixo mostra a distribuição por área administrativa de domicílios beneficiários do Programa Bolsa Família. Os microdados do Cadastro Único não fornecem informação sobre o bairro que a família mora. Assim, utilizamos o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) no qual a família realizou o cadastro como proxy para a área administrativa na qual ela reside. A distribuição de cores do mapa é baseada na escala da proporção anual de domicílios que receberam o benefício em 2018. Algumas famílias, no entanto, não tinham informações do CRAS em que foi realizado o cadastro, o que explica a atribuição de NA’s para algumas áreas administrativas.

Para ver a evolução histórica desse indicador entre os anos de 2013 e 2018, clique no ícone vermelho da área desejada. A análise do mapa nos mostra que as áreas administrativas de Campo Grande. Rocinha, Méier, Vila Isabel, Copacabana, Botafogo, Rio Comprido, São Cristóvão, Centro, Portuária, Ramos, Penha, Vigário Geral e Ilha do Governador tiveram queda da proporção de famílias beneficiárias ao longo do período analisado. As exceções a esse padrão são as áreas de Santa Cruz, Bangu, Complexo do Alemão, Anchieta, Pavuna e Barra da Tijuca, que apresentam aumento da participação, e as áreas de Guaratiba, Jacarepaguá, Realengo, Tijuca e Irajá, que apresentaram aumento entre 2013 e 2017 e pequena queda de participação em 2018.

MAPA 1 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018)

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Outro indicador importante é a evolução da renda familiar por pessoa (RFPC) por área administrativa e por faixa de renda. Para isso, as famílias foram divididas em quatro tipos de renda: (i) Famílias com RFPC inferior a R$89, valor equivalente à linha de extrema pobreza do Governo Federal; (ii) Famílias com RFPC entre R$89 e R$178 (linha de pobreza do Governo Federal); (iii) Famílias com RFPC entre R$178 e R$522 (meio salário mínimo); (iv) Famílias com RFPC superior a R$522. Os mapas 2, 3, 4 e 5 mostram a distribuição geográfica para o ano de 2018 de cada uma dessas faixas de renda, respectivamente. As instruções para análise desses mapas são análogas às do mapa anterior.

Comparando a distribuição das famílias do mapa 2, observamos que as áreas de Santa Cruz, Guaratiba, Barra da Tijuca, Bangu, Tijuca, Méier, Complexo do Alemão, Realengo, Anchieta, Pavuna e Irajá apresentaram aumento da participação de famílias com renda mensal por pessoa inferior a 89 reais. Quando olhamos para o segundo nível de renda passível de benefício do Bolsa Família (mapa 3), observamos que o padrão do mapa anterior se repete, com a inclusão da área administrativa de Campo Grande.

MAPA 2 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC inferior a R$89, valor equivalente à linha de extrema pobreza do Governo Federal;

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MAPA 3 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC entre R$89 e R$178 (linha de pobreza do Governo Federal);

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MAPA 4 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC entre R$178 e R$522 (meio salário mínimo)

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MAPA 5 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC superior a R$522

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A análise comparativa dos três mapas anteriores nos sugerem que há uma boa focalização do Programa Bolsa Família, com exceção das áreas administrativas do Méier e de Campo Grande, que apresentaram um aumento da participação de domicílios com RFPC dentro do limite do programa que não foi acompanhado de um aumento da proporção de famílias beneficiárias. Nesse sentido, faz-se necessária uma investigação mais detalhada dessa lacuna, de forma a identificar se há um processo de vazamento (famílias com RFPC maior que R$178 recebendo o benefício) ou uma falta de cumprimento das condicionalidades atreladas ao programa.

Com os dados da PNAD Contínua, observamos a evolução da probabilidade de um domicílio estar em condição de extrema pobreza (Renda domiciliar por pessoa de até R$151) ou pobreza (Renda domiciliar por pessoa entre R$151 e R$S 438) na última entrevista, dado que estava na mesma condição na primeira entrevista. Ou seja, estamos comparando a evolução de um indicador inter-anual de mobilidade social para os anos 2015-2016, 2016-2017 e 2017-2018. O período curto de análise decorre de limitações das bases de dados disponíveis, uma vez que o IBGE só incluiu a quinta entrevista a partir de 2016 e as informações de renda familiar total (incluindo benefícios do governo, aposentadoria, salário e outras fontes de renda) só estão disponíveis na base de dados anual. As linhas de pobreza, por sua vez, correspondem àquelas estabelecidas pelo Banco Mundial, de US$1,9 e US$5,5 diários por pessoa, respectivamente.

O gráfico 1 abaixo mostra a evolução desse indicador de mobilidade. A probabilidade de um domicílio extremamente pobre em 2015 permanecer nessa condição em 2016 era de aproximadamente 13%. No caso da pobreza, essa probabilidade era de 38%. Já no ano de 2017, as probabilidades de um domicílio permanecer na mesma situação no ano seguinte eram de 22%, no caso de extrema pobreza e de aproximadamente 41%, no caso de pobreza. Colocando uma lupa nas características dos domicílios que ascenderam socialmente, a porcentagem de domicílios que eram chefiados por mulheres e que saíram da condição de extrema pobreza caiu de 41% para 29,5%. No caso dos domicílios que deixaram de ser pobres, essa porcentagem aumentou de 21% para 28,5%

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No que se refere ao mercado de trabalho, do total de domicílios que saíram do status de extrema pobreza em 2015-16, apenas 37% tinham chefe de domicílio que estava desempregado na 1ª entrevista e se tornou ocupado na 5ª visita. Já entre 2017 e 2018, esse valor subiu para 54,5%, sugerindo que houve alguma melhora no mercado de trabalho para essas famílias extremamente pobres. No caso dos domicílios pobres, houve uma queda de 1,5 pontos percentuais nesse indicador, saindo de 21% para 19,5%. Tais resultados indicam que, para os domicílios pobres, o fator renda do trabalho não foi o principal componente da mobilidade observada.

Analisando o fator escolaridade do chefe, do total de domicílios que saíram da extrema pobreza em 2016 vis à vis o ano anterior, 27% apresentaram aumento dos anos de escolaridade do chefe de domicílio. Entre 2017-2018, esse valor caiu para 22,7%. Para as famílias pobres, tal valor apresentou queda de 3 pontos percentuais, saindo de 32% para 29%. Apesar de não termos dados em painel suficientemente longos para uma análise mais robusta da pobreza com as bases de dados disponíveis, esses resultados nos alertam para a questão da pobreza estrutural no Brasil, até agora pouquíssimo estudada.

A análise da pobreza requer uma compreensão de sua multidimensionalidade e a distinção entre sua concepção estática e dinâmica. Em particular, é necessário distinguir os indivíduos que experimentam a pobreza transitória daqueles que sofrem de pobreza estrutural. No primeiro caso, os indivíduos transitam temporariamente por esse estado de pobreza (ou extrema pobreza), devido a fatores estocásticos (aleatórios) ou mudanças na acumulação de ativos e seus respectivos retornos. No que diz respeito à pobreza estrutural, o indivíduo abaixo de uma certa linha de pobreza permanece nesse estado repetidamente ao longo de seu ciclo de vida, devido a condições estruturais e não estocásticas (Carter e Barret, 2006). Entre as características que podem estar associadas à pobreza estrutural estão a escassez de ativos físicos e capital humano, composição demográfica, localização da família e baixa renda no trabalho (Mckay e Lawson, 2002). Nesse sentido, o estudo da pobreza estrutural diz respeito à compreensão da pobreza como um processo dinâmico no qual os pobres têm pouca ou nenhuma mobilidade social. Sem uma análise mais longa e robusta do processo de pobreza, distinguindo-o entre transitória e permanente, não teremos como atacar o problema na sua raiz, isto é, identificando as lacunas no processo de acumulação de ativos produtivos (que geram renda). Os dados apresentados acima nos sugerem que pode haver uma preponderância de mobilidade social temporária ao invés de uma mobilidade conduzida por fatores como aumento da escolaridade dos membros do domicílio e empregos de maior qualidade, que geram uma renda maior e mais estável.

Para além da necessidade de um acompanhamento mais longínquo e aprofundado das famílias pobres, é fundamental que os formuladores de política pública incorporem o conceito de investimento social em seus desenhos de política de combate à pobreza estrutural. Criado a partir do trabalho da presidência holandesa da União Europeia em 1997, tal conceito diz respeito à compreensão da política social como um fator produtivo, isto é, que pode gerar aumento de eficiência na economia mantendo inclusão social. Com o objetivo de atuar frente aos chamados “novos riscos sociais”, atrelados à mudança demográfica, robotização do trabalho e outros fenômenos contemporâneos, o investimento social leva em consideração todo o ciclo de vida dos indivíduos. Nesse sentido, as políticas de investimento social são pautadas na tríade ‘buffers’ (ou ‘colchões’, em tradução livre), ‘Fluxo’ e ‘Estoque’.

O primeiro pilar objetiva assegurar a proteção social, como o Bolsa Família, por exemplo. O pilar do ‘Fluxo’ atua sobre o mercado de trabalho, tentando garantir elevados níveis de participação (principalmente de mães) em empregos de alta qualidade e transições mais suaves entre empregos e/ou entre o desemprego e a ocupação. Por fim, o pilar do ‘Estoque’ está atrelado à capacidade produtiva no futuro, através do aumento do estoque de capital humano e da produtividade (Hemerijck, 2013). Juntando essas três vertentes, as políticas de investimento social buscariam um crescimento autossustentável e inclusivo. Apesar das nítidas dificuldades de desenho e operacionalização dessas políticas, tais vertentes parecem ser um bom começo para enfrentar a crise econômica e o aumento da pobreza que dela resulta.



Ana Luiza Pessanha é membro da Iniciativa RioMais. Economista pela UFRJ com foco em Pobreza e Desigualdade, é criadora e coordenadora do Núcleo Executivo de Políticas Públicas do Movimento Acredito na cidade do Rio de Janeiro.


Larissa Montel é graduada em Relações Internacionais pela UNESP. Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ. Gestora Estratégica do Projeto RUAS. É também parte da coordenação do Fórum Permanente sobre população adulta em situação de rua do Rio de Janeiro.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Diego Passadori/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] Em dólares PPP de 2011. Valores convertidos em reais pela base de dados da OCDE para consumo privado e deflacionados pelo INPC do Rio de Janeiro para valores de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/sdd/prices-ppp/

Referências Bibliográficas
Carter, M. R. and Barrett, C. B. (2006). The economics of poverty traps and persistentpoverty: An asset-based approach.Journal of Development Studies, 42(2):178–199

Hemerijck, A. Changing Welfare States. Oxford University Press, 2013.

Mckay, A. and Lawson, D. (2002). Chronic Poverty : A Review of Current QuantitativeEvidence CPRC Working Paper No 15 Chronic Poverty Research Centre ISBN Number: 1-904049-14-1.Development, (April):1–28

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Um diagnóstico das desigualdades entre escolas públicas no Rio de Janeiro

*Por Arthur Rodrigues

A educação é um dos principais instrumentos de combate ao ciclo intergeracional da pobreza. Um filho de pais na base da pirâmide social tem maior probabilidade de se tornar um adulto pobre, por dificuldade de acesso a bens como saúde, educação e, consequentemente, oportunidades no mercado de trabalho. No Brasil, um dos países com menor índice de mobilidade social do mundo, a situação é especialmente grave. Em média, descendentes de famílias entre os 10% mais pobres da população levariam 9 gerações para alcançar a renda média, contra apenas 2 gerações na Dinamarca e 4.5 na média entre os países da OCDE¹.

Nesse quadro, a educação pública é uma ferramenta poderosa para mitigar os efeitos da desigualdade de oportunidades e estimular o “elevador social”. No Rio de Janeiro, cidade em que desigualdade e segregação estão encravadas na própria ocupação territorial, é importante analisar se essa ferramenta está sendo utilizada de maneira eficiente e se de fato contribui para estimular a ascensão social.

Para tal, devemos analisar as 1540 escolas da rede municipal, 364 da rede estadual e 27 da rede federal na cidade do Rio de Janeiro observadas no mapa abaixo. Passe o mouse para saber o nome do colégio e clique para saber o nome do bairro.

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DESIGUALDADE DE RESULTADOS

SAEB

O SAEB é um teste administrado aos alunos da rede pública de forma bienal, avaliando alunos do 5º e 9º ano do ensino fundamental e do 3º ano do ensino médio nas disciplinas de português e matemática. Se observarmos a média da nota dos alunos nas provas, em conjunto com o índice de nível socioeconômico das escolas elaborado pelo INEP para 2015, podemos analisar a correlação entre essas duas variáveis para as diferentes redes de ensino, tendo em mente que a princípio a rede estadual não oferta ensino fundamental e a rede municipal não oferta ensino médio

O índice socioeconômico é elaborado a partir de questionário entre os alunos da escola e leva em consideração a renda familiar, a posse de bens e a contratação de serviços de empregados domésticos pela família dos estudantes, além do nível de escolaridade de seus pais ou responsáveis. Passe o mouse (ou clique, caso esteja visualizando por mobile) no gráfico para ver qual escola representa cada ponto e o valor do índice socioeconômico e da média da prova. Os pontos verdes representam escolas da rede municipal, os azuis da rede estadual e os vermelhos da rede federal.

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Os resultados da prova SAEB 2017 nos permitem observar desigualdades socioeconômicas no ensino público. O colégio com a melhor média na rede municipal, a Escola Roberto Burle Marx, é também a com o segundo maior nível socioeconômico dos alunos da rede. A federal com melhor média, o Colégio Pedro II do Humaitá, apresenta o quarto maior nível socioeconômico. Em média, um aumento de 10 pontos no nível socioeconômico da escola indica um aumento esperado de 29,7 pontos na média do SAEB. Também existe desigualdade entre as redes de ensino: mesmo que a escola com a melhor nota seja a escola municipal Roberto Burle Marx, escolas da rede federal obtiveram notas em média 36 pontos ou 16% maior do que as da rede municipal.

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Os resultados do 9º ano corroboram as afirmações anteriores. A escola Roberto Burle Marx apresenta a melhor nota e o maior nível socioeconômico da rede municipal, enquanto o Colégio Militar apresenta a melhor nota e o segundo maior nível socioeconômico da rede federal. As escolas da rede federal apresentam notas 53 pontos ou 20% maiores que a rede municipal, e um aumento de 10 pontos no nível socioeconômico da escola vem acompanhado de um aumento de, em média, 36 pontos na nota do SAEB. Mesmo com o ensino fundamental não sendo atribuição do estado, uma escola estadual realizou a prova do SAEB para o 9º ano, e obteve nota abaixo da média das redes municipal e federal.

ENEM

Para a avaliação do Ensino Médio, a nota do ENEM foi utilizada para comparação, visto que abrange um universo maior de escolas que a prova SAEB. As notas avaliadas são de 2015, último ano em que o INEP divulgou o resultado agregado por escola. Os pontos azuis representam escolas da rede estadual e os vermelhos da rede federal.

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A desigualdade entre redes observada para o ensino fundamental persiste para o ensino médio: as escolas da rede federal obtiveram uma média 127 pontos ou 25% maior do que as da rede estadual. A distinção entre escolas estaduais e federais é muito clara, tanto em termos de índice socioeconômico médio, quanto em termos de nota média do ENEM, com o Colégio de Aplicação da UERJ se comportando de maneira anômala em relação ao restante da rede estadual. Além disso, a diferença entre redes pode até mesmo ser subestimada, visto que a base de dados do ENEM não inclui as escolas em que menos de 50% dos alunos do terceiro ano fizeram a prova. Se os alunos decidem entre fazer ou não a prova de acordo com a expectativa de suas notas, a adição de escolas estaduais de baixa adesão ao ENEM aumentaria ainda mais a distorção entre redes. A desigualdade também se manifesta em termos socioeconômicos: um aumento de 10 pontos no índice socioeconômico está relacionado a um aumento de 111 pontos em média na nota do ENEM.

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Além disso, é importante ressaltar a concentração geográfica das 15 escolas com maior nota no ENEM. Dentre estas, apenas o Colégio Pedro II Unidade Realengo se situa na Zona Oeste da cidade, lar de mais de 2.3 milhões dos cerca de 6 milhões de cariocas.

DESIGUALDADE DE infraestrutura

Entretanto, a correlação entre nível socioeconômico das escolas e notas nas provas de avaliação não garante que os alunos ricos estejam frequentando escolas melhores. É possível que alunos ricos e pobres dentro da mesma escola alcancem resultados diferentes por fatores extraescolares: por exemplo, a família rica tem condições de pagar aulas de reforço escolar. Assim, é possível que todo o efeito de desigualdade se dê pela renda e não por diferenças na qualidade das escolas frequentadas, e uma alocação aleatória entre ricos e pobres dentro das escolas produza os resultados observados. Uma maneira de avaliar com mais profundidade essa hipótese é observando a desigualdade entre escolas não pelo resultado em provas, mas pela infraestrutura que ela oferece a seus alunos.

Para isso, é preciso estudar a pesquisa de infraestrutura das escolas realizada anualmente no âmbito do Censo Escolar. A partir da base de dados do Censo Escolar 2019, construiu-se um índice de infraestrutura para cada escola a partir da existência ou não dos seguintes equipamentos: elevador para alunos com mobilidade reduzida, laboratório de ciências, máquina copiadora, laboratório de informática, internet e rede por banda larga. Os seis equipamentos representam o mesmo peso na composição do índice. Assim, podemos comparar a infraestrutura que as escolas de diferentes redes fornecem para seus alunos, a das escolas frequentadas por alunos de diferentes níveis socioeconômicos e como as escolas com melhor infraestrutura se concentram geograficamente. A desigualdade entre redes pode ser observada no boxplot abaixo:

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Escolas de diferentes redes também apresentam, em média, diferenças significativas em sua infraestrutura. O índice médio de infraestrutura da rede federal foi de 0.94, valor 30% maior que o índice médio de 0.72 da rede estadual e 45% maior que o índice médio de 0.65 da rede municipal.

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Também é possível observar desigualdade de infraestrutura de caráter socioeconômico. As escolas pertencentes ao grupo socioeconômico² mais elevado apresentam índice de infraestrutura médio de 0.92, valor 179% maior que o índice médio de 0.33 das escolas que compõe o grupo de menor nível socioeconômico. Além disso, um salto entre os grupos de nível socioeconômico vem acompanhado de um aumento da média do índice de infraestrutura para todos os grupos observados.

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Por último, também é possível observar a distribuição geográfica da infraestrutura das escolas da rede pública do Rio de Janeiro a partir da média do índice de infraestrutura das escolas de cada região administrativa da cidade. Optou-se pela análise das regiões administrativas, visto que existem bairros da cidade sem nenhuma escola da rede pública. A região com melhor resultado é o Centro, com índice médio de 0.64. Nenhum subdistrito da Zona Oeste está presente entre os cinco melhores no índice.

CONCLUSÃO

Quando o carioca compara escolas públicas para matricular seus filhos, encontra um cenário de desigualdade socioeconômica, geográfica e entre as redes de ensino. Os recursos de infraestrutura parecem ser desproporcionalmente alocados para alunos de maior nível socioeconômico, com possíveis efeitos perversos sobre a mobilidade social na cidade. As escolas da rede pública com mais infraestrutura e com melhores notas em exames de avaliação são frequentadas por alunos com maior nível socioeconômico médio, têm maior probabilidade de pertencer à rede federal e estão concentradas fora da Zona Oeste.

É importante ressaltar que nenhum dos resultados obtidos nesse artigo indicam relação causal entre as variáveis observadas, e não levam necessariamente a prescrições de políticas públicas para mitigar o problema. Para isso, precisamos estudar mais a fundo como funciona a alocação de alunos em cada escola e tentar estimar como seria o desempenho de determinado aluno caso ele estudasse em uma escola com diferentes características. É o que será feito para a rede municipal em um texto futuro, que analisará como o município pode utilizar a sua rede de escolas para realizar políticas públicas que impulsionem a ascensão social.



Arthur Rodrigues é um dos idealizadores da Iniciativa RioMais. Formando em Economia pela UFRJ e certificado em Análise de Dados para Políticas Públicas pela Universidade de Chicago. Possui experiência profissional em consultoria estratégica de gestão pública e políticas públicas.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Educação e Ciência na Cidade do Rio de Janeiro/Wikipedia

*** Todos os mapas e gráficos foram elaborados pelo autor a partir das seguintes fontes: INEP (Censo Escolar 2019, ENEM por escola 2015, SAEB 2017, INSE 2015) e SIURB-RJ (geolocalização das Escolas Municipais, Escolas Estaduais e Escolas Federais)

Notas de Rodapé
[1] “A Broken Social Elevator? How to Promote Social Mobility” – OCDE 2018
[2] O INEP separa as escolas em 6 grupos socioeconômicos de acordo com o nível do INSE. No Rio de Janeiro, nenhuma das escolas da rede pública faz parte do grupo 1. Ver metodologia completa.