Categorias
Texto

A renda do petróleo e gás e como usá-la: um exercício para o Rio de Janeiro

*Por Marcelo Casagrande

O QUE SÃO ROYALTIES E PARTICIPAÇÃO ESPECIAL?

O Rio de Janeiro é um grande produtor nacional de petróleo e de gás natural associado, o principal estado brasileiro neste quesito. Pode-se destacar os municípios de Maricá, Niterói e a capital fluminense como alguns dos que mais são beneficiados com a renda petrolífera, normalmente transferida pela União, que é por lei a detentora dos recursos explorados em seu território, através de dois caminhos: Royalties e Participação Especial.

Os royalties são remunerações pagas pelo direito à exploração de algum recurso e podem ser aplicados em diversas atividades. Na indústria do entretenimento, por exemplo, royalties podem ser pagos ao autor de uma música para que o conteúdo possa ser usado comercialmente por outros indivíduos. Porém, neste texto os royalties se referem à indústria de petróleo e gás e, portanto, segundo a ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), são “uma remuneração à sociedade pela exploração desses recursos não renováveis”¹. Isso quer dizer que a renda é concedida à União e repassada aos estados e municípios beneficiários para que eles a revertam em investimentos favoráveis à sociedade que compensem os danos causados pela exploração. O cálculo dos royalties de petróleo e gás é feito segundo uma alíquota (que varia de 5% a 15%) incidente sobre o valor gerado por um campo de produção, sendo este valor calculado multiplicando-se as quantidades de produção e os preços de referência de petróleo e gás no mercado.

A participação especial, por sua vez, é uma compensação financeira extraordinária paga trimestralmente pelas empresas concessionárias àqueles que possuem campos de produção de petróleo e gás natural de grandes proporções. A participação é calculada segundo alíquotas progressivas aplicadas sobre a receita líquida da produção trimestral de cada campo e a transferência para a União, estados e municípios beneficiados depende das características do campo (terrestre ou marítimo) e da data referente à sua declaração de comercialidade².

para onde vão estes recursos?

Royalties e Participação Especial formam, portanto, as rendas da produção de óleo e gás que serão estudadas neste texto e cabe agora discutir o que a literatura tem apresentado como melhor forma de se utilizar estes recursos. Segundo determinação da ANP, que segue a ideia inserida na sua definição do conceito de royalties, a aplicação dos recursos deveria dar prioridade a ganhos sociais através de investimentos em educação, saúde, criação de empregos em outros setores e mitigação da degradação ambiental.

No Brasil, por muitos anos, têm se discutido com entusiasmo pelas forças políticas de que maneira essas receitas devem ser distribuídas de forma a beneficiar todos os entes da federação e não apenas aqueles que possuem campos dentro de seus domínios. Esta seria uma forma de distribuição justa para que algumas regiões não obtivessem vantagens desiguais para se desenvolverem em relação a outras, mas diversos estudos publicados demonstraram que os dados de mensuração do desenvolvimento, como renda per capita, educação, saúde e pobreza não apresentaram resultados melhores para os municípios beneficiários quando comparados a não beneficiários³. Uma causa costumeiramente apresentada para justificar a falta de resultados positivos é o destino incorreto dos recursos, pois o que se observa é a aplicação da renda petrolífera em gastos correntes, como nas despesas com pessoal e com a previdência social, em detrimento dos outros destinos apontados como preferenciais. Portanto, este artigo busca discutir qual a melhor forma de aplicar a receita em questão.

É claro que o equilíbrio dos gastos com pessoal e com a previdência é muito importante para a saúde fiscal do município e devem ser buscados os meios para que não falte recursos para estes pagamentos, mas usar ostensivamente a receita do petróleo parece se mostrar um suicídio fiscal. De um lado, temos um gasto constante, determinado pela massa de trabalhadores e aposentados do município, e potencialmente crescente ao longo do tempo. Enquanto isso, do outro lado vemos uma receita extremamente variável – que depende do volume produzido e do preço de referência no mercado mundial, além do câmbio, uma vez que o preço é determinado em dólar. Para agravar mais ainda a situação, podemos enfrentar crises, como a deste ano de 2020 por conta da Covid-19, que afetem (muito) negativamente a produção e o preço do petróleo e, consequentemente, as contas municipais. A fragilidade do câmbio brasileiro frente ao dólar, que está sendo escancarada nesse período de crise, é mais um motivo de preocupação quanto à volatilidade desta receita.

O QUE SÃO FUNDOS SOBERANOS?

A saída que países, estados e municípios ao redor do mundo têm encontrado para a situação de dependência do petróleo é a criação de fundos alimentados pela receita do recurso natural, uma espécie de poupança. Estes fundos costumam receber aportes periódicos e são aplicados para gerar uma renda a ser explorada preferencialmente no longo prazo, em favor das gerações futuras, quando se espera que a exploração dos recursos esteja ameaçada. Se um dia o petróleo vai acabar e não será mais possível gerar receita a partir dele, a ideia é destinar uma parcela do que recebemos para a readaptação necessária no futuro, quando outras atividades deverão ocupar o vácuo deixado pelo óleo.

O maior exemplo de sucesso de um fundo soberano de petróleo no mundo é o da Noruega, país que ganhou grande destaque no mercado mundial dos combustíveis fósseis a partir da década de 1970. Hoje, o GPFG (Government Pension Fund Global), que recebeu o primeiro depósito em 1996 e adotou a estratégia de aplicar seus investimentos ao redor de todo o mundo, como uma forma de diversificação e minimização dos riscos, possui valor de mercado superior a 1 trilhão de dólares. Considerado o maior fundo soberano do planeta, tem um rendimento médio de 6,1% ao ano desde 1998⁴.

Embora esse caso possa servir de inspiração, não se pode comparar a economia e a sociedade norueguesa com a carioca, por inúmeras razões, o que nos força a usar exemplos mais adequados à nossa realidade como referência. E pode-se fazer isso sem mesmo sair do estado: Niterói e Maricá, recentemente, adotando medidas semelhantes ao país europeu, criaram fundos que visam prover as futuras gerações com recursos da atual exploração do petróleo e do gás natural. Esta não é a única função do fundo, que também pode ser utilizado para possibilitar políticas anticíclicas em tempos de turbulência sem comprometer o orçamento público. Com efeito, como noticiado na grande mídia, ambos os municípios se juntaram nesta época de pandemia do novo coronavírus para auxiliar o município vizinho de São Gonçalo na construção de um hospital de campanha. Este exemplo de uso pontual já foi possível mesmo com os fundos ainda recentes, que receberam seus primeiros depósitos há menos de dois anos, o que demonstra o potencial deste tipo de iniciativa.

Mais exemplos são vistos no Brasil, a começar pelo primeiro fundo criado, o de Ilhabela, município do litoral paulista com grande destaque na produção de óleo e gás, que recebe volumosos recursos. Tendo isso em vista, a prefeitura criou em abril de 2018 o Fundo Soberano Municipal, pioneiro nacional. Além disso, o estado do Espírito Santo também criou o seu fundo em 2019.

O que todos estes exemplos de poupadores têm em comum é o significativo poder de gerar receita a partir do recebimento dos royalties e da participação especial, indiscutivelmente maior do que o observado hoje na cidade do Rio de Janeiro. Olhando para os municípios, observa-se o seguinte cenário para o ano de 2018: com a renda do petróleo, Maricá obteve uma arrecadação superior a R$ 1,5 bilhão (73% da receita total do município), Niterói arrecadou R$ 1,3 bilhão (38% do total arrecadado pela prefeitura) e Ilhabela recebeu pouco mais de R$ 782 milhões (correspondendo a 80% do todo). Para o Rio, a arrecadação foi de R$ 338 milhões, o que representa apenas 1,2% da receita total. As estatísticas acima são referentes ao apresentado nos relatórios da ANP e do Siconfi (Tesouro Nacional)⁵.

A partir de uma análise do que se tem noticiado sobre os fundos dos municípios de referência, conclui-se que os investimentos aplicados têm seguido padrões diferentes em cada situação. Para Maricá, por exemplo, a lei que previa aportes de 5% da receita dos royalties no início da poupança já foi modificada para que sejam depositados 10% dos royalties mensalmente e 10% da participação especial a cada trimestre. Em janeiro de 2020, com pouco mais de um ano de depósitos e rendimentos, o montante do fundo passava de R$ 274 milhões e a previsão da prefeitura é de que ele chegue aos R$ 2 bilhões em oito anos⁶.

Em Niterói, a estratégia também é destinar 10% do que se arrecada, mas apenas com a participação especial. Em março de 2020 o fundo chegou a R$ 272 milhões após os aportes realizados anteriormente e a previsão da prefeitura é de que em vinte anos atinja-se a marca de mais de R$ 2,7 bilhões poupados⁷.

Por último, Ilhabela formulou o seu fundo com o depósito de 15% do arrecadado com royalties em 2018. Essa porcentagem cresce paulatinamente até atingir 55% em 2022, quando espera-se que isso represente R$ 1 bilhão ao ano. Ainda existe uma emenda na lei que diz que o município também deve depositar 50% do excedente que ultrapassar a previsão anual, caso ele ocorra⁸. Todas as prefeituras garantem que as iniciativas têm sido feitas com o planejamento necessário e que recursos não ficarão escassos para outras áreas.

um fundo para o rio?

A cidade do Rio de Janeiro, que não possui tal fundo soberano, é receptora de ambas as transferências de royalties e participação especial. Isso a coloca numa posição potencialmente favorável ao bom uso destes recursos em prol da sociedade e da boa administração pública.

Antes de mais nada, é importante frisar que esta não chega perto de ser a fonte de receita mais expressiva do município, o que pode ser um bom sinal, uma vez que sinaliza uma dependência muito menor dos recursos naturais em relação aos outros. A renda do petróleo representou sempre menos de 2% da receita total nos últimos anos, mesmo levando em conta o grande volume gerado, com uma média próxima a R$ 15,7 milhões por mês em royalties e R$ 41,8 milhões por trimestre em participação especial em 2019 (ANP).

Com o decorrer da crise do novo coronavírus e com o entendimento mais amplo do que ela representa para o setor do petróleo, porém, é possível argumentar que não estamos no momento mais propício para iniciar o fundo. É de fato previsível que toda a indústria de óleo e gás sofra perdas ainda imensuráveis como efeito da crise, que vem afetando tanto a produção quanto o preço – vide as recentes baixas históricas do WTI e do Brent. Segundo o Secretário da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro, em entrevista concedida à Reuters publicada no dia 22 de abril, o rombo nas contas do estado só com a diminuição dos royalties será de mais de R$ 4 bilhões⁹. Essa situação será igualmente prejudicial ao município.

Se ele já existisse, a poupança poderia cumprir muito bem a sua função de auxiliar políticas anticíclicas e emergenciais. O exemplo do hospital de campanha em São Gonçalo, com o custo de R$ 90 milhões financiado pelas prefeituras de Maricá e Niterói com recursos do petróleo, se encaixa muito bem nessa questão¹º.

Com o intuito de realizar um exercício retroativo, seria um pouco difícil precisar um momento único para a iniciativa da prefeitura de criar um fundo soberano, visto que as discussões já acontecem ao redor do mundo há décadas. Porém, considerando as conhecidas limitações governamentais no Brasil e os excessivos gastos em grandes eventos recentes no país – e, mais ainda, na cidade – ancorados pela renda petrolífera, tomemos como referência apenas as datas dos casos nacionais.

O primeiro cenário hipotético é o mais ousado, pois considera o início do mandato do atual prefeito Marcelo Crivella, que poderia ter começado a captar recursos para o fundo em 2017 caso esta fosse uma das pautas da sua candidatura. O cenário 2 considera o início pioneiro de Ilhabela em 2018. Finalmente, no cenário 3 temos um fundo com início somente em 2019, já depois de observado o movimento dos outros municípios.

Considerando que o Rio possui uma receita muito menos dependente da exploração de petróleo e gás natural do que os municípios de referência, podemos estimar porcentagens de cálculo do depósito bem maiores em comparação com as outras cidades. Então, para as projeções, foram consideradas porcentagens de 10%, 20% e 50% – apenas como orientadoras – incidentes sobre os royalties e as participações especiais recebidos. Assim, ainda se deixa uma margem bondosa da receita para ser usada com outros fins e não se compromete as contas da prefeitura. Como rendimento conservador, foi considerada a taxa Selic vigente na época de cada suposto depósito. A tabela a seguir resume as projeções de cada cenário.

TABELA 1 – Rio de Janeiro: Exercício retroativo (em R$ milhões)

Fonte: Elaboração própria (a partir de dados de arrecadação da ANP)

Como se pode notar a partir das projeções, o Rio teria potencial para já ter um fundo com centenas de milhões de reais poupados. Pensando no curto prazo, esse montante certamente seria um alívio considerável no auxílio a políticas de combate à crise do coronavírus. No longo prazo, com uma capacidade de investimento cada vez maior, destinos mais adequados para os recursos do petróleo do que os que se têm observado atualmente poderiam ser idealizados. Sabe-se da carência de assistência social que existe na cidade, que pode ser atenuada no futuro com uma política consciente. Maricá, por exemplo, informa que o programa já existente de Renda Básica da Cidadania seguirá contando com financiamento a partir do seu fundo soberano.

Conclusão

A ANP, em seu site oficial, disponibiliza previsões de arrecadação de royalties e participação especial para os beneficiários nos próximos anos. Seria muito interessante estudar estes dados e com eles formular projeções futuras para se ter uma ideia mais real do potencial de um fundo soberano carioca. Porém, visto que estas previsões foram realizadas antes de todo o terremoto econômico de 2020, elas tornaram-se pouco confiáveis. O baque na indústria será grande e ainda imensurável e, com isso, o foco deste texto foi a análise retroativa dos dados.

Novamente considerando o manuseio dos recursos, podemos olhar para os nossos vizinhos. Na gestão da atual crise, Maricá, Niterói e Ilhabela anunciaram planos financiados por seus fundos para auxiliar seus cidadãos, não só com a construção de estruturas de assistência médica, mas também com provimento de renda e facilitação de crédito. Analogamente, é de se imaginar que o enfrentamento na capital fluminense seria facilitado caso providências tivessem sido tomadas com antecedência.

Ganhos e compensações sociais pela exploração dos recursos energéticos devem ser a prioridade no uso dos recursos, em uma estratégia de longo prazo. No momento, por mais que presenciemos tempos extraordinários de crise sanitária e econômica, é importante que as medidas exemplares de destinação da receita do petróleo estejam presentes nas discussões dos formuladores de políticas cariocas. Hoje, o que acontece no Rio é a priorização equivocada nos gastos correntes com a previdência, que certamente deve ser tratada com zelo, mas com um plano que a torne sustentável no futuro. Da mesma forma, o uso desenfreado desta receita volátil em programas de desenvolvimento social no curto prazo deve ser rechaçado em prol da longevidade destes programas.

Por fim, as definições das taxas e do modelo do fundo em geral – somente sobre royalties, somente sobre participação especial ou uma combinação dos dois – assim como a sua estratégia de maximização do rendimento, demandam um vasto estudo e muita negociação política. O objetivo inicial deste artigo não é formular uma proposta de imediato, mas inserir esta questão importante no debate público do Rio de Janeiro. E como espera-se que a cidade continue a ganhar volumosos recursos petrolíferos por um bom tempo, ainda não é tarde demais para isso.



Marcelo Casagrande é graduando em Economia pela UFRJ e com intercâmbio acadêmico na Universidade de Copenhague. Foca suas pesquisas acadêmicas na área de Economia da Energia e possui experiência profissional no setor público.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Bacia de Campos: Principais Operações/Petrobras

Notas de Rodapé
[1] Ver < http://www.anp.gov.br/royalties-e-outras-participacoes/royalties > acessado em 25/04/2020
[2] Ver < http://www.anp.gov.br/royalties-e-outras-participacoes/participacao-especial > acessado em 25/04/2020
[3] Postali, Fernando; Nishijima, Marislei. “Distribuição das Rendas do Petróleo e Indicadores de Desenvolvimento Municipal no Brasil nos Anos 2000” (2011); Nogueira, Lauro; Menezes, Tatiana. “Os Impactos dos Royalties do Petróleo e Gás Natural Sobre o PIB per capita, Índices de Pobreza e Desigualdades” (2012).
[4] Ver < https://www.nbim.no/ > acessado em 25/04/2020
[5] Ver < https://siconfi.tesouro.gov.br/siconfi/pages/public/declaracao/declaracao_list.jsf > acessado em 25/04/2020
[6] Ver < https://www.marica.rj.gov.br/2020/01/17/fundo-soberano-de-marica-atinge-r-274-milhoes-em-mais-de-um-ano/ > acessado em 25/04/2020
[7] Ver < https://fazenda.niteroi.rj.gov.br/site/com-novo-deposito-poupanca-de-royalties-de-niteroi-ultrapassa-r-270-milhoes/ > acessado em 25/04/2020
[8] Ver < https://epbr.com.br/camara-de-ilhabela-aprova-1o-fundo-soberano-para-royalties-do-brasil/> acessado em 25/04/2020
[9] Ver < https://br.reuters.com/article/businessNews/idBRKCN22438U-OBRBS?utm_source=newsletters+epbr&utm_campaign=f3d183886b-transicao_COPY_01&utm_medium=email&utm_term=0_5931171aac-f3d183886b-196819841 > acessado em 25/04/2020
[10] Ver < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/06/com-mais-royalties-do-petroleo-niteroi-e-marica-se-unem-para-ajudar-sao-goncalo-a-construir-hospital-de-campanha-para-pacientes-da-covid-19.ghtml > acessado em 25/04/2020