Categorias
Texto

O Espírito Santo e o Rio

*Por Eduarda La Rocque

O Espírito Santo tem hoje condição de sair da crise do coronavírus rumo a uma trilha de desenvolvimento sustentável, coisa que o Rio pré-olímpico teve e perdeu. Qual a principal diferença entre os dois Estados, tão semelhantes em oportunidades vinculadas à posição estratégica, capital humano e dotes naturais? O capital cívico, a confiança, a estabilidade jurídica, a transparência, a credibilidade das instituições, a tal governança dos manuais de sustentabilidade. Este alto nível de capital cívico foi atingido através de um trabalho árduo, de toda uma geração de políticos e gestores públicos; e não só eles, foi um movimento de toda a sociedade capixaba, incluindo empresários, movimentos populares e pesquisadores universitários, que conseguiram através de um processo de renovação de cidadania, tirar o Estado da “terra sem lei” em que se encontrava no início deste século. A situação era deplorável, similar infelizmente à do Rio de hoje.

São ainda muitos os desafios do Espírito Santo, principalmente aqueles ligados à diversificação da economia, melhoria da infraestrutura e qualidade de vida dos mais vulneráveis, o enfrentamento à pobreza e aos mais diversos tipos de desigualdades. Mas o fato de ser o único Estado avaliado com nota A pelo Tesouro Nacional desde 2012 e um atual governo comprometido com a responsabilidade fiscal e com a redução das desigualdades sociais e regionais faz com que surja a esperança de um caso de sucesso real de desenvolvimento sustentável e inclusivo no país. Mas como medir o “sucesso” da gestão de um país ou ente subnacional?

Certamente o PIB per capita não serve. Joseph Stiglitz, já antes do vírus, alertava que o PIB é uma ilusão perversa. “O mal-estar social alastra-se, o colapso da Natureza avança e a democracia declina. Se ainda assim o termômetro que afere o ‘sucesso’ das sociedades nos diz que tudo vai bem — então, é preciso trocá-lo por outro”¹.

O PIB per capita não é uma boa métrica para medir o grau de desenvolvimento de um país, muito menos Estado ou cidade. O PIB é muito impactado por atividades relacionadas à indústria extrativa, sem penalizar a desigualdade nem o desgaste do meio ambiente, além de não computar adequadamente a economia criativa. A alternativa proposta por Amartya Sen, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), é muito adequada para ranquear os países ou mesmo municípios, mas não tão boa para avaliar os resultados de política pública num prazo mais curto, pois varáveis como renda média, expectativa de vida e nível de escolaridade demoram muito a reagir. Para avaliar os resultados das políticas públicas lá “na ponta”, ou seja, os impactos reais nos territórios, foi criado por Michael Porter o IPS (índice de progresso social), que aborda aspectos sociais, de direitos e ambientais e hoje é atualizado pela Rede de Progresso Social (por sinal já implantado na cidade do Rio). Um bom ponto de partida para que candidatos à prefeitura se comprometam com a melhora de cada um dos indicadores, em cada uma das 32 regiões de planejamento contempladas pelo estudo.

No Espírito Santo, estamos desenvolvendo o IPES, índice de prosperidade que irá mensurar a melhoria de qualidade de vida dos cidadãos, por região, medida através de uma composição de sete “ativos” da sociedade: econômico, social, ambiental, cívico (que inclui as questões de governança), urbano, cultural e humano, em cada um dos municípios e microrregiões. Aproximar a academia, o governo nas suas diversas esferas, setor privado e sociedade civil num pacto pela prosperidade do Espírito Santo, visando a redução de desigualdades, sociais e regionais.

Integrar as políticas públicas nos territórios de uma forma participativa é o único caminho viável para o desenvolvimento sustentável, que requer um processo de melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, principalmente para os mais vulneráveis, e mantendo o respeito ao meio ambiente e às instituições.

O modelo de desenvolvimento territorial proposto é composto por três etapas. A composição de um conselho de atores envolvidos e comprometidos com o desenvolvimento do território; a pactuação de metas de desenvolvimento holísticas; e, uma matriz de responsabilidades para se alcançar e monitorar as metas. Para dar certo, depende de representatividade dos atores, informação qualificada e empoderamento do conselho. Precisamos de uma meta, um guia; daí a importância dos indicadores econômicos e sociais. São eles que pautam toda a informação, a composição do saber da sociedade e os rumos dos países e entes subnacionais.

Um território pode ser uma favela, um bairro, uma cidade, um país ou uma microrregião do Estado. É este modelo que está sendo elaborado para as dez microrregiões do Espírito Santo, com o projeto de Desenvolvimento Regional Sustentável, que visa ao mesmo tempo o desenvolvimento com justiça social, com a preservação ambiental e a prevenção de crises, através de um plano de longo prazo participativo. Foi o que tentamos fazer, sem sucesso, com a UPP Social e, depois no Pacto do Rio, experiência que conto, como um relato pessoal, no artigo “Democracia e Informação”, do livro Política, nós também sabemos fazer, e que transcrevo em anexo. Podemos aprender muito com os casos de fracasso.

A situação emergencial de violência urbana no Rio de Janeiro, hoje, é um caso que justifica uma concentração de esforços do setor privado, mercado de tecnologia social e do mercado de capitais². Conter a violência é importante; mas a longo prazo, a única solução sustentável é prevenir: investir em projetos que ajudem a consolidar a paz nos territórios pacificados através da inclusão social e produtiva daquelas comunidades, preferencialmente por meio do estímulo ao empreendedorismo local.

Como nos alerta Yunus Muhammad³, se não nos engajarmos em um programa de recuperação econômica pós-coronavírus impulsionado por uma consciência social e ambiental, inevitavelmente tomaremos um caminho muito pior do que a catástrofe do coronavírus.

anexo: a experiência do pacto do rio

Só quando deixei o gabinete da Secretaria de Fazenda do Rio para assumir o programa da prefeitura para o desenvolvimento urbano das favelas pacificadas (UPP Social), é que enxerguei a desigualdade estrutural em que vivemos e a bolha de elite em que estava inserida. Meu relato parte de uma doutora em economia que não estudou ciência política, mas que exerceu por sete anos um papel político de relevância. Vem da experiência prática, também pelos doze anos anteriores em que trabalhei no mercado de capitais, como especialista em gestão de riscos, controle e governança corporativa.

A informação qualificada é o que traz vantagem comparativa ao mercado, seja o financeiro ou o de votos. Há sempre a tentativa de se esconder informação e perdas já existentes para, assim, obter vantagens escusas, burlar controles e, no caso do Estado, esconder a realidade do eleitor. Não temos instrumentos adequados de participação e controle. Foi quando assumi o Instituto Municipal Pereira Passos (IPP) que descobri que nos falta, principalmente, informação qualificada. E o valor que a informação tem para o desenvolvimento sustentável de uma cidade.

A UPP Social, apesar dos nossos dois prêmios internacionais, não obteve o sucesso que se pretendia – o que ajudou a deteriorar a política de pacificação –, por falta de integração, eficiência e avaliação das inúmeras e dispersas políticas sociais, que derivam das enormes disputas políticas em torno desses territórios; o tal mercado de votos. Era uma metodologia teoricamente muito bem desenhada na Secretaria de Direitos Humanos e Assistência Social do Estado, visando um choque de serviços públicos paralelamente à entrada da polícia/UPP. O projeto mostrou-se, no entanto, inviável politicamente, pois pressupunha um articulador político entre as demandas qualificadas das favelas pacificadas e toda a ampla oferta não só do setor público, como da sociedade, àquele novo mercado que surgia.

A grande concentração de ações públicas daria muito poder a quem as realizasse, e o projeto acabou minado, empurrado do Estado para a prefeitura, onde nunca teve força. O prefeito não queria apoiar a política de pacificação porque assim estaria fortalecendo politicamente o secretário de segurança, que já ganhava o apoio da população. E a união de esforços não se encaixava com a estratégia de todos os políticos que ali estavam, que era justamente fatiar aquele novo mercado de votos que se abria. As favelas foram “empoderadas” com o excesso de promessas dispersas e inexequíveis através de “lideranças locais”, que na verdade eram cabos eleitorais dos candidatos e trabalhavam para os políticos, e não para a população, em um projeto de desenvolvimento urbano que financiou, hoje se sabe, boa parte da corrupção do governo estadual e federal e quase nada ficou nas comunidades, além de descrédito, decepção.

A UPP Social, já na prefeitura, tentando integrar as forças, mas sem força política, acabou sendo atacada pelos dois lados. Tanto pelo próprio governo como também pelos moradores das favelas, que não gostaram de ver seu “espaço de fala” invadido por cientistas sociais “representando” a prefeitura. E os cientistas sociais, por outro lado, não queriam nem o sucesso da política de pacificação nem representar a prefeitura, justificadamente nada benquista pelas favelas. Do governo, a UPP Social tinha menos empatia ainda, já que se colocava como defensora dos direitos da favela, e não um mediador entre as duas partes, tal como deveria ser. E os secretários também não ajudavam, empurrando projetos de cima para baixo, sem levar em consideração os bem-elaborados diagnósticos produzidos pela UPP Social. Até que o programa começou a se esgarçar internamente, entre os gestores de campo que coletavam as demandas e a área institucional, que obviamente não conseguia fazê-las acontecer.

Sem força política, a saída foi transformar a UPP Social num programa de geração de informação qualificada e, em torno dela, acordos e parcerias público-privadas participativas, muitas delas com muito sucesso. O IPP participava da “Cúpula das Favelas”, composta por um grupo de lideranças comunitárias e de gestores públicos e privados sob a coordenação do Ministro Reis Velloso, do Fórum Nacional. O grupo publicou vários livros com planos de desenvolvimento para as favelas⁴ e implantou diversos projetos de parcerias público-privadas participativas. Dentre os vários liderados pelo IPP, destaca-se o Agentes de Transformação⁵ – que elaborou uma espécie de senso dos jovens das favelas pacificadas, feito pelos próprios jovens. Todos os projetos visando formar uma base de informação qualificada sobre as favelas e a partir de então um plano participativo de ação para a inclusão social e produtiva delas. Um exemplo claro de informação qualificada era o mapa rápido participativo das favelas, elaborado pela UPP Social, que indicava as condições urbanas, de água, saneamento, coleta de lixo, risco de deslizamento etc., para cada microrregião de cada favela. A partir de então poderia ser feita uma força-tarefa para melhorar as condições, direcionada para os responsáveis na prefeitura, Comlurb, por exemplo, e outros poderes como a estadual Cedae, para resolver as questões, principalmente as das áreas mais vulneráveis.

O mapa, no entanto, nunca chegou a ser usado. Pelo contrário, foi proibido de ser publicado por questões políticas, o que me levou à convicção de que a gestão da informação, essencial para a gestão consciente e sustentável da cidade, não poderia estar nas mãos do governo; deveria ser um órgão independente. Toda essa experiência acabou se transformando no Pacto do Rio, lançado em dezembro de 2014, com o objetivo de construir essa instância de articulação das ações em torno das favelas, que no momento pré-olímpico eram muitas, com muito investimento financeiro, mas muito desintegradas.

O objetivo era retroalimentá-las, fortalecê-las, já que o quadro falimentar que já há muito vemos no Rio já se desenhava para nós. O modo como as ações destruíam umas às outras por descuido, por disputa de territórios, além da corrupção, era de uma enorme ineficiência. A falta de clareza de tudo que estava acontecendo, a falta de transparência, levava a um estado de corrupção generalizada. O objetivo com o Pacto era fazer convergir um movimento de baixo para cima – a partir da vontade da população de participar e melhorar a qualidade dos serviços públicos – com a pressão dos organismos internacionais por mais transparência e melhores políticas públicas e privadas em prol do desenvolvimento sustentável. Foi tarde demais.

Mas esta e tantas outras experiências podem ser usadas para uma recuperação rápida do Cidade Maravilhosa. Com pessoas experientes que aproveitem informação qualificada, estudos acadêmicos, o saber popular, programas de sucesso e os erros cometidos para que retomemos para uma trajetória de desenvolvimento sustentável. Com informação qualificada, transparência, responsabilidade fiscal e social. Um modelo territorial de reurbanização e geração de renda nos nossos morros e periferias. Um projeto amplo e bem desenhado de habitação de interesse social não só nos centros urbanos, mas planejando melhor a ocupação do solo do interior é o melhor caminho para a retomada econômica.



Eduarda La Rocque é economista chefe do Banestes. Foi secretária de fazenda da cidade do Rio e presidente do Instituto Pereira Passos.


* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Antônio Lapa/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] Artigo “Mercado e Democracia” na revista Outras Palavras, 2020.
[2] Eduarda La Rocque, O Mercado de Capitais e as Políticas Públicas, REVISTA RI, n.214, 2016.
[3] Artigo publicado no jornal italiano La Republica no dia 18.04.2020.
[4] ‘Favela é cidade’: fazer acontecer”. In: VELLOSO, J.P.R. (coord.). Cultura, “favela é cidade” e o futuro das nossas cidades. Fórum Nacional / Inae, 2014.
[5] Disponível em https://www.unicef.org/brazil/pt/media_31942.html