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O Rio Invisível: Evolução dos indicadores de pobreza extrema e pessoas em situação de rua (Parte 1/2)

*Por Ana Luiza Pessanha e Larissa Montel

Em períodos de crise econômica, um dos primeiros efeitos a ser percebido pela população é o aumento do número de conhecidos desempregados e do número de pessoas em situação de rua nos lugares onde frequenta. Se você é carioca e circula pelas ruas da cidade, então certamente tem notado que nos últimos anos a criatividade das pessoas que estão em busca de fontes de renda se tornou cenário comum no cotidiano. Tem cantores de rap, vendedores dos mais inusitados utensílios, dançarinos fantasiados de personagens da Marvel e declamadores de poesia. Todos em uma tentativa honesta de conseguir alguns trocados. Curiosamente, as pessoas mais vistas pela população são as mais invisíveis para o Estado.

Não obstante observações pessoais possam ser precursoras de boas ideias, quando pensamos em política pública a primeira etapa do processo deve constituir de um diagnóstico correto do problema a ser enfrentado. Nesse sentido, o objetivo desse texto é apresentar ao leitor carioca a evolução dos dados a respeito de pessoas em situação de pobreza extrema e em situação de rua, respectivamente. Posteriormente, faremos uma breve revisão preliminar da literatura a respeito de possíveis intervenções a serem consideradas pelos formuladores de políticas públicas, respeitando diagnósticos locais do município do Rio, restrições fiscais e objetivos sociais.

Em relação aos dados, iremos comparar a evolução do número de domicílios em situação de pobreza a partir de duas bases de dados: Microdados do Cadastro Único, realizado pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) e a PNAD Contínua anual, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma das principais diferenças entre as duas bases corresponde ao tempo em que o órgão executor acompanha a mesma família. No primeiro caso, a família que possui renda familiar por pessoa até metade de um salário mínimo é acompanhada por tempo indeterminado, desde que mantenha seu cadastro ativo. Este cadastro constitui pré-requisito para se tornar beneficiário de alguns programas sociais como Bolsa Família, PRONATEC, Carteira do Idoso e outros. No caso da PNAD Contínua, o IBGE acompanha o mesmo domicílio por apenas cinco trimestres e não possui nenhuma vinculação com programas de governo, tendo como único objetivo a divulgação de estatísticas robustas a respeito de variáveis como demografia, mercado de trabalho e educação.

O mapa 1 abaixo mostra a distribuição por área administrativa de domicílios beneficiários do Programa Bolsa Família. Os microdados do Cadastro Único não fornecem informação sobre o bairro que a família mora. Assim, utilizamos o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) no qual a família realizou o cadastro como proxy para a área administrativa na qual ela reside. A distribuição de cores do mapa é baseada na escala da proporção anual de domicílios que receberam o benefício em 2018. Algumas famílias, no entanto, não tinham informações do CRAS em que foi realizado o cadastro, o que explica a atribuição de NA’s para algumas áreas administrativas.

Para ver a evolução histórica desse indicador entre os anos de 2013 e 2018, clique no ícone vermelho da área desejada. A análise do mapa nos mostra que as áreas administrativas de Campo Grande. Rocinha, Méier, Vila Isabel, Copacabana, Botafogo, Rio Comprido, São Cristóvão, Centro, Portuária, Ramos, Penha, Vigário Geral e Ilha do Governador tiveram queda da proporção de famílias beneficiárias ao longo do período analisado. As exceções a esse padrão são as áreas de Santa Cruz, Bangu, Complexo do Alemão, Anchieta, Pavuna e Barra da Tijuca, que apresentam aumento da participação, e as áreas de Guaratiba, Jacarepaguá, Realengo, Tijuca e Irajá, que apresentaram aumento entre 2013 e 2017 e pequena queda de participação em 2018.

MAPA 1 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018)

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Outro indicador importante é a evolução da renda familiar por pessoa (RFPC) por área administrativa e por faixa de renda. Para isso, as famílias foram divididas em quatro tipos de renda: (i) Famílias com RFPC inferior a R$89, valor equivalente à linha de extrema pobreza do Governo Federal; (ii) Famílias com RFPC entre R$89 e R$178 (linha de pobreza do Governo Federal); (iii) Famílias com RFPC entre R$178 e R$522 (meio salário mínimo); (iv) Famílias com RFPC superior a R$522. Os mapas 2, 3, 4 e 5 mostram a distribuição geográfica para o ano de 2018 de cada uma dessas faixas de renda, respectivamente. As instruções para análise desses mapas são análogas às do mapa anterior.

Comparando a distribuição das famílias do mapa 2, observamos que as áreas de Santa Cruz, Guaratiba, Barra da Tijuca, Bangu, Tijuca, Méier, Complexo do Alemão, Realengo, Anchieta, Pavuna e Irajá apresentaram aumento da participação de famílias com renda mensal por pessoa inferior a 89 reais. Quando olhamos para o segundo nível de renda passível de benefício do Bolsa Família (mapa 3), observamos que o padrão do mapa anterior se repete, com a inclusão da área administrativa de Campo Grande.

MAPA 2 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC inferior a R$89, valor equivalente à linha de extrema pobreza do Governo Federal;

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MAPA 3 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC entre R$89 e R$178 (linha de pobreza do Governo Federal);

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MAPA 4 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC entre R$178 e R$522 (meio salário mínimo)

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MAPA 5 – Distribuição por área administrativa dos domicílios beneficiários do Bolsa Família (2018): Famílias com RFPC superior a R$522

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A análise comparativa dos três mapas anteriores nos sugerem que há uma boa focalização do Programa Bolsa Família, com exceção das áreas administrativas do Méier e de Campo Grande, que apresentaram um aumento da participação de domicílios com RFPC dentro do limite do programa que não foi acompanhado de um aumento da proporção de famílias beneficiárias. Nesse sentido, faz-se necessária uma investigação mais detalhada dessa lacuna, de forma a identificar se há um processo de vazamento (famílias com RFPC maior que R$178 recebendo o benefício) ou uma falta de cumprimento das condicionalidades atreladas ao programa.

Com os dados da PNAD Contínua, observamos a evolução da probabilidade de um domicílio estar em condição de extrema pobreza (Renda domiciliar por pessoa de até R$151) ou pobreza (Renda domiciliar por pessoa entre R$151 e R$S 438) na última entrevista, dado que estava na mesma condição na primeira entrevista. Ou seja, estamos comparando a evolução de um indicador inter-anual de mobilidade social para os anos 2015-2016, 2016-2017 e 2017-2018. O período curto de análise decorre de limitações das bases de dados disponíveis, uma vez que o IBGE só incluiu a quinta entrevista a partir de 2016 e as informações de renda familiar total (incluindo benefícios do governo, aposentadoria, salário e outras fontes de renda) só estão disponíveis na base de dados anual. As linhas de pobreza, por sua vez, correspondem àquelas estabelecidas pelo Banco Mundial, de US$1,9 e US$5,5 diários por pessoa, respectivamente.

O gráfico 1 abaixo mostra a evolução desse indicador de mobilidade. A probabilidade de um domicílio extremamente pobre em 2015 permanecer nessa condição em 2016 era de aproximadamente 13%. No caso da pobreza, essa probabilidade era de 38%. Já no ano de 2017, as probabilidades de um domicílio permanecer na mesma situação no ano seguinte eram de 22%, no caso de extrema pobreza e de aproximadamente 41%, no caso de pobreza. Colocando uma lupa nas características dos domicílios que ascenderam socialmente, a porcentagem de domicílios que eram chefiados por mulheres e que saíram da condição de extrema pobreza caiu de 41% para 29,5%. No caso dos domicílios que deixaram de ser pobres, essa porcentagem aumentou de 21% para 28,5%

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No que se refere ao mercado de trabalho, do total de domicílios que saíram do status de extrema pobreza em 2015-16, apenas 37% tinham chefe de domicílio que estava desempregado na 1ª entrevista e se tornou ocupado na 5ª visita. Já entre 2017 e 2018, esse valor subiu para 54,5%, sugerindo que houve alguma melhora no mercado de trabalho para essas famílias extremamente pobres. No caso dos domicílios pobres, houve uma queda de 1,5 pontos percentuais nesse indicador, saindo de 21% para 19,5%. Tais resultados indicam que, para os domicílios pobres, o fator renda do trabalho não foi o principal componente da mobilidade observada.

Analisando o fator escolaridade do chefe, do total de domicílios que saíram da extrema pobreza em 2016 vis à vis o ano anterior, 27% apresentaram aumento dos anos de escolaridade do chefe de domicílio. Entre 2017-2018, esse valor caiu para 22,7%. Para as famílias pobres, tal valor apresentou queda de 3 pontos percentuais, saindo de 32% para 29%. Apesar de não termos dados em painel suficientemente longos para uma análise mais robusta da pobreza com as bases de dados disponíveis, esses resultados nos alertam para a questão da pobreza estrutural no Brasil, até agora pouquíssimo estudada.

A análise da pobreza requer uma compreensão de sua multidimensionalidade e a distinção entre sua concepção estática e dinâmica. Em particular, é necessário distinguir os indivíduos que experimentam a pobreza transitória daqueles que sofrem de pobreza estrutural. No primeiro caso, os indivíduos transitam temporariamente por esse estado de pobreza (ou extrema pobreza), devido a fatores estocásticos (aleatórios) ou mudanças na acumulação de ativos e seus respectivos retornos. No que diz respeito à pobreza estrutural, o indivíduo abaixo de uma certa linha de pobreza permanece nesse estado repetidamente ao longo de seu ciclo de vida, devido a condições estruturais e não estocásticas (Carter e Barret, 2006). Entre as características que podem estar associadas à pobreza estrutural estão a escassez de ativos físicos e capital humano, composição demográfica, localização da família e baixa renda no trabalho (Mckay e Lawson, 2002). Nesse sentido, o estudo da pobreza estrutural diz respeito à compreensão da pobreza como um processo dinâmico no qual os pobres têm pouca ou nenhuma mobilidade social. Sem uma análise mais longa e robusta do processo de pobreza, distinguindo-o entre transitória e permanente, não teremos como atacar o problema na sua raiz, isto é, identificando as lacunas no processo de acumulação de ativos produtivos (que geram renda). Os dados apresentados acima nos sugerem que pode haver uma preponderância de mobilidade social temporária ao invés de uma mobilidade conduzida por fatores como aumento da escolaridade dos membros do domicílio e empregos de maior qualidade, que geram uma renda maior e mais estável.

Para além da necessidade de um acompanhamento mais longínquo e aprofundado das famílias pobres, é fundamental que os formuladores de política pública incorporem o conceito de investimento social em seus desenhos de política de combate à pobreza estrutural. Criado a partir do trabalho da presidência holandesa da União Europeia em 1997, tal conceito diz respeito à compreensão da política social como um fator produtivo, isto é, que pode gerar aumento de eficiência na economia mantendo inclusão social. Com o objetivo de atuar frente aos chamados “novos riscos sociais”, atrelados à mudança demográfica, robotização do trabalho e outros fenômenos contemporâneos, o investimento social leva em consideração todo o ciclo de vida dos indivíduos. Nesse sentido, as políticas de investimento social são pautadas na tríade ‘buffers’ (ou ‘colchões’, em tradução livre), ‘Fluxo’ e ‘Estoque’.

O primeiro pilar objetiva assegurar a proteção social, como o Bolsa Família, por exemplo. O pilar do ‘Fluxo’ atua sobre o mercado de trabalho, tentando garantir elevados níveis de participação (principalmente de mães) em empregos de alta qualidade e transições mais suaves entre empregos e/ou entre o desemprego e a ocupação. Por fim, o pilar do ‘Estoque’ está atrelado à capacidade produtiva no futuro, através do aumento do estoque de capital humano e da produtividade (Hemerijck, 2013). Juntando essas três vertentes, as políticas de investimento social buscariam um crescimento autossustentável e inclusivo. Apesar das nítidas dificuldades de desenho e operacionalização dessas políticas, tais vertentes parecem ser um bom começo para enfrentar a crise econômica e o aumento da pobreza que dela resulta.



Ana Luiza Pessanha é membro da Iniciativa RioMais. Economista pela UFRJ com foco em Pobreza e Desigualdade, é criadora e coordenadora do Núcleo Executivo de Políticas Públicas do Movimento Acredito na cidade do Rio de Janeiro.


Larissa Montel é graduada em Relações Internacionais pela UNESP. Mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ. Gestora Estratégica do Projeto RUAS. É também parte da coordenação do Fórum Permanente sobre população adulta em situação de rua do Rio de Janeiro.



* As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade do autor.
** Foto de Divulgação: Diego Passadori/Unsplash

Notas de Rodapé
[1] Em dólares PPP de 2011. Valores convertidos em reais pela base de dados da OCDE para consumo privado e deflacionados pelo INPC do Rio de Janeiro para valores de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.oecd.org/sdd/prices-ppp/

Referências Bibliográficas
Carter, M. R. and Barrett, C. B. (2006). The economics of poverty traps and persistentpoverty: An asset-based approach.Journal of Development Studies, 42(2):178–199

Hemerijck, A. Changing Welfare States. Oxford University Press, 2013.

Mckay, A. and Lawson, D. (2002). Chronic Poverty : A Review of Current QuantitativeEvidence CPRC Working Paper No 15 Chronic Poverty Research Centre ISBN Number: 1-904049-14-1.Development, (April):1–28